Introdução
São várias as hipóteses sobre a
origem dos povos bantu, algumas versões rezam que saíram das férteis terras do
sudeste sariano ou do lago Chade. Outros afirmam que surgiram da região dos
grandes lagos, na África Central, ainda outros dizem que vieram da Ásia Menor e
posteriormente se foram fixando nas regiões dos grandes lagos, Sudão e a
posterior emigrado para o sul. Ao passo que outras teorias dizem que os bantu
entraram na África pelo istmo do Suez ou através do mar vermelho e forma se
fixando na Abissínia e futuramente migraram para o Sul e sudoeste.
Apesar desta polissemia de
conceitos sobre a origem dos bantu, a realidade é que os bantu em contínuo
movimento migratório a procura de melhores lugares e condições de sobrevivência
se foram sedentarizando e criando uma unidade étnica e cultural baseada nos
sistemas de parentescos e grupos de filiação na consangüinidade, criando pequenas
aldeias geridas por representantes masculinos de um único grupo.
É sobre este breve preâmbulo que, neste
trabalho abordaremos a situação temática da organização social dos bantu, onde
no nosso repertório trataremos comunidade bantu e sua hierarquia, a organização
clãnica e tribal dos bantu bem a divisão da sociedade em castas e classes, o
casamento e a religião tradicional bantu e tantos outros aspectos referentes
aos bantu e sua organização social.
1.
Organização social dos bantu.
A forma de organização da sociedade bantu assenta nos
sistemas de parentescos e grupos de filiação baseadas na consangüinidade real
ou mística, da qual se exige uma transmissão, de herança e de preferência que
as liguem a uma das genealogias biológicas que toda pessoa recebe ou transmite:
paterna e/ou materna. As sociedades humanas adoptam um sistema de descendência,
cujo ponto de referência se situa num dos progenitores ou em ambos. Este sistema de
descendência ou de parentesco é unilateral e, verificando-se dois sistemas: o
patrilinear e o matrilinear. Assim, a descendência está ligada a uma só
linhagem.
As relações entre pessoas que se consideram aparentadas por
consangüinidade real, fictícia ou putativa, são chamadas de “parentesco”. Pois os bantu primitivos já viviam em pequenas
aldeias geridas por representantes masculinos de um único grupo de parentesco;
assim, a aldeia era o lar e o centro espiritual de todos os membros da
linhagem.
Uma das razões para se instaurar este sistema de linhagens
deve ter sido a divisão de trabalho por sexos (assunto que iremos abordar mais
adiante).
Os verdadeiros protagonistas da existência individual e
social bantu são os grupos, as comunidades: família, clã, tribo e o reino,
império ou a confederação de reinos.
O bantu não pode viver sem família nem clã, pois são dois
grupos (primários, por sinal) fundamentais e vitais que dão sentido e
consistência à sua vida. A família e o clã são células iniciais, vivificantes e
essencialmente comunitárias que definem a cultura do indivíduo bantu. Desta
feita, não se pode conceber nem explicar o indivíduo bantu isolado de uma
comunidade.
A parentela cria a capa irrenunciável, onde se geram as
estruturas sociais e o ambiente onde elas podem subsistir. A sua realidade
místico-participante constituitiva estabelece um amplo sistema operativo,
fundamento da organização social, ao situar todos os indivíduos dentro de um
contexto de relações vitais e mútuas e de comportamentos funcionais e decisivos
para a subsistência individual e comunitária.
Assim, a sociedade bantu se vai alargando em círculos
concêntricos escalonados, sobrepostos e cada vez mais amplos, apoiando-se nas
famílias, como núcleo e células-base. No entanto, ao conjunto de varias
famílias se forma um clã. Quando
vários clãs sentem uma origem comum, irmanados pela mesma língua, religião,
tradições, costumes e espalhados por regiões contiguas, dão origem a tribo. Ao conjunto de várias tribos, com
afinidades lingüísticas, geográficas ou interesses comuns, podem estruturar um reino. Assim aconteceu com os grandes
impérios negros pré-coloniais que se formaram a partir da integração, conquista
ou confederação de vários reinos.
Portanto, como já dissemos, a primeira célula social bantu é
a família elementar, conjugal, nuclear ou reduzida que compreende pai, mãe e
filho. Mas essa não é a verdadeira família bantu.
Por uma razão, as famílias nucleares, unidas e integradas
entre si, são o fundamento da solidariedade que dá origem às instituições
sócio-políticas as quais não são mais do que o alargamento do núcleo primário.
Este, como não se pode bastar a si mesmo, para ser amparado, precisa de se
apoiar em grupos mais amplos e organizados.
Esta família não forma um grupo autônomo. Vive imersa e
depende do sistema de parentesco, da família alargada e do clã. Contudo, ela é
o elemento básico das estruturas sociais e, pelas alianças matrimoniais, dá-se
origem às alianças políticas.
A família nuclear é o pilar da sociedade bantu, embora não
se possa conceber separada dos círculos mais amplos e fecundos: família
alargada, clã e tribo. A família isolada, individualizada, fechada sobre si
mesma e autônoma, não existe. O bantu não a concebe, pois os princípios de
consangüinidade e de participação vital não a admitem. Alem disso, as condições
econômicas, climáticas e geográficas impedem o seu isolamento. Por isso é que
se disse que a verdadeira família bantu não é a nuclear ou reduzida, mas sim a
alargada. Pois o bantu precisa de viver em conjunto, participar, sentir-se
amparado e acolhido num grupo numeroso e defender-se da magia ou do homem. A
participação vital como núcleo e seiva da cultura, impõe-lhe uma vida
comunitária e acomodar-se no grupo, participando da mesma corrente vital
comunicada pelo sangue.
Somente no matrimonio, na família elementar, o homem e a
mulher realizam a mais profunda aspiração da sua existência: prolongar-se,
reviver, assegurar a sobrevivência. Da mesma forma satisfazem as esperanças das
suas comunidades: crescer, enriquecer-se e assegurar o patrimônio social,
político e religioso. «A verdadeira família serere (pode dizer-se também da
bantu) é a família maternal, “a família alargada”. Em sentido restrito, a
família não é um grupo autônomo; vive na “casa comunal” da família clãnica, no
sentido da “gens”. Esta é a
verdadeira família negro-africana»¹.
O bantu goza de uma
comunidade muito ampla que lhe proporciona o deleite de viver sempre em
família.
As diversas famílias alargadas formam uma densa rede
totalizante que, à base de comunidades e solidariedades, estrutura a sociedade
que se compraz em ser essencialmente comunitária. Assim, os membros se tratam como
parentes. Chamam “pai” ao tio e “irmão” ao primo. Sem se importarem com
a proximidade do parentesco, as designações de “pai” e “irmão” vão-se
alargando indefinidamente. Os bantu encontram pais e irmãos nos lugares mais
afastados.
1.1.1 A chefia bantu.
Há um aspecto cultural muito relevante relativo aos chefes
bantu. Esta hierarquia baseia-se no direito ancestral e numa concepção
religiosa e profana simultaneamente e, participa da sacralidade que impregna
esta sociedade.
|
Entre os bantu, o chefe de família faz a ligação directa com
os antepassados, presentes na vida comunitária, cuja influência, benéfica ou
nefasta, deve ser cuidada. Pela sua proximidade com eles, qualidade, poder e
conhecimentos superiores, podem arrancar-lhes favores ou torná-los propícios.
Resolve os conflitos e responsabiliza-se pelo bem-estar
familiar. A sua autoridade estende-se ao campo social, político, judicial e
religioso. Quando a família cresce e de dilata, os velhos começam a
substituí-los em determinadas funções. Aparecem os subchefes de aldeias
dependentes, “pater famílias – chefe
familiar” que, por sua delegação, cumprem idênticas funções.
A sua autoridade fica
limitada e subordina à dos chefes de organizações sociais e políticas
superiores: clã, tribo e reino. Os anciãos e o conselho familiar, embora gozem
de grande prestígio, não o suplantam em autoridade, a anão ser em situações
extremas e flagrantes. A sua autoridade nunca pode chegar ao despotismo porque
a família forma uma comunidade democrática. O conselho familiar, no qual actuam
todos os maiores de idade, admite a sua autoridade suprema porque lhe reconhece
a superioridade de estirpe, mas controla as suas decisões e opina em assuntos
importantes.desta forma as decisões passam por uma consulta prévia à comunidade.
O chefe desempenha uma função fundamental no grupo. Como
pessoa mais qualificada e vitalmente mais poderosa, é o guia necessário da
comunidade e o guarda das suas tradições e da sua coesão. As motivações
religiosas, como veremos, marcam o ritmo e caracterizam a sua mentalidade.
Segundo esta concepção sacral, o chefe é um carismático. Constitui, com os
notáveis e os anciãos, o grupo mais autorizado, o estrato social mais
prestigiado e, como instituição presidida por um “enviado carismático”, que dirige,
pensa, solidariza, vigia e procura o bem da comunidade. Quem vê o chefe
contacta com a vida que arrancou do hipônimo, e contempla este e os outros
antepassados. O chefe é o canal de conexão directa com a corrente vital
ancestral. Por ele, a comunidade realiza a participação vital na fonte genuína.
Por isso, a chefia pertence à linhagem que a comunidade reconhece como
autenticidade de sangue e maior antiguidade. Só pode ser chefe quem prove, por
sua ascendência, que descende, em linha directa, do fundador do grupo. Só assim
se reúne as condições inatas que confirmam a sua predestinação para patriarca,
sacerdote, juiz, protector e condutor da comunidade.
Em resumo, o chefe é o sangue e o espírito dos antepassados,
prolongamento e deposito comunicante do dinamismo vital, pessoa sagrada,
responsável pela comunidade perante os antepassados, seu delegado por
capacidade e eleição e a sua encarnação, pois que, por intermédio dele,
vivificam a comunidade a comunidade.
1.1.2 O clã e a tribo.
Um clã2 constitui-se num grupo de pessoas
unidas por parentesco e linhagem e que é definido pela descendência de um
ancestral comum. Mesmo
2. Clã
é a forma em língua portuguesa da palavra gaélica clann, que significa
"crianças". An Chlann Aoidh, o nome em gaélico escocês
para o Clã Mackay, significa literalmente "As Crianças do Fogo"
(sendo "fogo" uma tradução literal do nome gaélico Aodh –;
caso genitivo e vocativo, hAoidh –; o qual pode ser traduzido
foneticamente para o escocês e inglês como Eth, Y, Hy, Heth, Huey e Hugh).
Clannad é uma forma estendida da palavra clann, e
que pode ser traduzida por "família".
|
se os reais padrões de
consangüinidade forem desconhecidos, não obstante os membros do clã reconhecem
um membro fundador ou ancestral maior. Como o parentesco baseado em laços pode
ser de natureza meramente simbólica, alguns clãs compartilham um ancestral
comum "estipulado", o qual é um símbolo da unidade do clã. Quando
este ancestral não é humano, é referenciado como um totem animal. Em
geral, o parentesco difere da relação biológica, visto que esta também envolve adoção,
casamento
e supostos laços genealógicos. Os clãs podem ser descritos mais facilmente
como subgrupos de tribos
e geralmente constituem grupos de 7000 a 10 000 pessoas.
Alguns clãs são patrilineares,
significando que seus membros são vinculados à linhagem masculina; Outros são matrilineares
quando seus membros são vinculados à linhagem feminina. Ainda existem clãs
"bilaterais", consistindo de todos os descendentes do ancestral maior,
tanto da linhagem masculina quanto feminina. Se um clã é patrilinear,
matrilinear ou bilateral, depende das regras e normas de parentesco que regem a
sociedade onde ele se insere.
O clã pode ser definido como um grupo aparentado por uma por
uma consangüinidade mística. Nele se fundem as estruturas familiares e
políticas. O clã supera os grupos de consangüinidade pela sua amplitude
demográfica e importância e relevo sociais e políticos.
O clã desempenha uma função política, é a estrutura
intermédia entre a família alargada e a tribo, reino ou império. Mas a idéia de
clã está de tal maneira ligada à de parentela mítica que é preciso renunciar a
esta aparente claridade verbal e ver no clã um tipo de organização polivalente
que se torna necessário estudar ora como família alargada, ora como sistema
político.
Como sistema político, o clã define uma solidariedade
econômica e territorial, comunidade de culto, tribunal, direito e auxílios
comuns, embora esta associação se expresse em termos de parentela mística ou de
exogamia3.
Como sistema familiar (e ao mesmo político, sem deixar de
ser) marca uma solidariedade econômica e territorial e uma união-comunidade
fundamentada nessa parentela, onde se impõem leis em matéria política às
famílias alargadas.
Segundo certos etnólogos, clã é a união de grupos totêmicos
ou talismãnicos dentro de uma mesma tribo, em que cada clã possui uma
denominação, símbolos, uma divisa e um brasão a que se dá o nome de totem; que
pode ser um animal (o mais corrente) ou um vegetal.
Cada clã possui a sua designação específica: um nome que
pode ser esotérico, honorífico ou que pode evocar a sua origem mítica com
caracteres descritivos pormenorizados da sua história. O clã, é por isso, é um
agrupamento de indivíduos e famílias que se consideram parente, não porque as
genealogias conhecidas o demonstrem, mas porque têm como herança as mesmas
insígnias, nomes, proibições, funções rituais ou cósmicas.
Ao que parece, a origem das tribos remonta aos tempos das migrações clãnicas. Vários clãs, ao
radicarem-se numa determinada área, constituíam uma tribo.
3. Em biologia, a
exogamia refere-se ao cruzamento de indivíduos pouco relacionados
geneticamente. Isto beneficia a descendência, visto que esta tem menos
hipóteses de herdar duas cópias de um gene
defeituoso.culturalmente, exogamia é o casamento entre membros de grupos
diferentes, ou seja, japonês com alemã,
italiano com africana, americano com havaiana, caracterizando a exogamia.
|
A organização tribal nasceu a partir de afinidades étnicas e
culturais, de interesses econômicos ou de alianças entre clãs afins. A
prepotência de algum clã, sobretudo pelas suas qualidades de guerreiras, foi
sem duvida um factor importante, impondo-se aos outros, assumindo a autoridade
e formando a casta dirigente, onde nas suas migrações ou incursões guerreiras
consegue conectar e aglutinar as restantes.
Os clãs, ao atingir uma amplitude, subdividem-se em subclãs. Vivendo
todos no mesmo território, surge a necessidade de coesão e um novo sistema
social e político, com uma autoridade comum superior às autoridades clãnicas
que servia de referência e de encontro, sobretudo em momentos críticos.
Os clãs com a mesma cultura, língua e religião, ao tomarem
consciência da sua unidade, e reconhecida pelos vizinhos, dão origem a
solidariedade e ao surgimento de uma tribo.
Sem dúvida, a tribo é algo mais do que um grupo social e
político. O parentesco comum parece ser algo de constitutivo. A sua união,
coesão e sentido de identidade arrancam de um antepassado comum, muito longínquo
e mais mítico do que do clã.
A tribo é sempre um sistema social que regula a integração
dos componentes, dentro de uma variedade organizativa que pode ser apertada,
formulada ou simplesmente mantida pela autoridade de um chefe que vela pelos
costumes aceites como comum e sanciona os desvios.
Todos estes sistemas são meios pelos quais um povo, cuja
filiação transcende as agrupações de parentesco e que se identifica a si mesmo
com uma área que habita e domina, se capacita para regular o procedimento dos
seus membros e dirige os seus assuntos quando tem de tratar com outros grupos
autônomos.
Assim sendo, a tribo é uma “família”, na qual cada indivíduo
e grupo mantêm relações bem definidas, constitui, sem dúvidas, uma verdadeira
sociedade e não um aglomerado de indivíduos que, casualmente, vivem num
determinado território.
A chefia tribal pertence ao clã aglutinador que se impõe;
dentro desse clã seguem-se as normas hereditárias da chefia clãnica. A tribo
pode ter como chefe um soberano, com caráter monárquico. Assim como tiveram os
Cuanhamas e ainda o conservam os Jingas. A maioria, porém, rege-se pelo tipo de
chefia mencionada, aconselhada e controlada pelos chefes clãnicos e familiares.
Em resumo, a tribo apresenta-se como um grupo social de
idêntica cultura, língua e religião e com uma consciência viva de identidade e
unidade moral. É a união de famílias e clãs. A sua unidade moral apela sempre
para a posse comum e permanente de um território, quando é sedentária, ou de
uma região geográfica determinada que percorre como nómada, em que os grupos
limítrofes reconhecem estes direitos.
1.2 O casamento tradicional
bantu.
O casamento bantu sistematiza e controla a vida social,
visto que organiza as relações entre parentelas e vai fixando a filiação. Por
ele, as linhagens têm direitos sobre as descendências e dilatam-se no tempo e
no espaço, depois de ficar fixadas.
O matrimonio é um assunto complexo em que os aspectos
econômicos, sociais e religiosos estão, por vezes, intrincicadamente misturados
que não se podem separar. Para os bantu, o matrimonio é o centro da
existência.é o lugar de encontro de todos os membros de uma comunidade: os defuntos,
os vivos e os que ainda vão nascer.
O matrimonio é o drama em que cada um participa como actor
ou como actriz e ano como mero espectador. Por isso, é um dever, uma
experiência fixada pela comunidade e um ritmo de vida em que cada um deve tomar
parte. Quem não participa é uma maldição para a comunidade, é um rebelde: não
só anormal como chega a um nível inferior ao humano. Em geral, se um indivíduo
não casa, significa que rejeitou a comunidade e que a comunidade o rejeita a
ele.
O casamento bantu fundamenta uma relação entre grupos. O
matrimonio bantu é uma aliança que legitima uma nova família enriquecedora e
une linhagens sem a intervenção de autoridades políticas. Desta forma, os dois
grupos, baseando-se na união, firmam um contrato, que não diz respeito somente
a uma só pessoa – homem ou mulher – mas aos dois grupos a que pertencem e que
ficam comprometidos. Assim, dois que se casam, fazem-no enquanto membros de
duas famílias, de dois clãs e, deste facto, nasce a sua dimensão comunitária e
social.
A
mulher ou homem, introduzidos pelos matrimônios no novo grupo, reforçam a
amizade e as alianças entre famílias, clãs, tribos e reinos amigos, ou
inauguram-nas se não são estranhos, diferentes ou hostis.
O bantu é consciente de que ao casar revigora a solidariedade
comunitária.
Como facto social, a plena integração do homem e da mulher
inicia nos ritos da puberdade, que condiciona o matrimonio. Ambos se realizam e
adquirem o pleno estatuto social quando se tornam progenitores. O casamento
bantu intenta, como fim primário, a continuidade ininterrupta da comunidade. Os
filhos vitalizam o grupo, amparam os velhos, continuam o culto aos antepassados
e asseguram a sobrevivência dos esposos.
O casamento bantu é também essencialmente fonte de vida,
pois a sua estrutura sócio-religiosa exige a procriação, que ocupa o cume da
hierarquia bantu. A aliança concretiza-se, se as linhagens se perpetuarem. Como
referido, na sociedade bantu, impõem-se a finalidade e a vivência comunitária.
Por este princípio, o fim primário do casamento é a procriação. O bantu casa prioritariamente
para ter filhos. O bantu com filhos sente-se protagonista da história da sua
comunidade e ele próprio se torna história. A sua existência fica justificada e
a missão da sua vida, sacralizada. Só assim se realiza um dos mais elevados
ideais.
O homem e a mulher só adquirem plenitude social e religiosa
pela sua fecundidade, já que isso lhes autorga um novo estatuto e prova a sua
maturidade pessoal e a benevolência dos antepassados. A fecundidade emancipa o
homem e a mulher. A sociedade reconhece-o. Gerar novas vidas é a maior
aspiração do bantu. Porque viver é criar e continuar a vida, o dom de Deus, que
se recebe através de gerações de antepassados atentos a esse tesouro. Por esse
motivo gerar filhos é a obrigação moral mais grave.
1.2.1 A exogamia (endogamia).
Exogamia é um processo ou norma positiva que regula as relações
entre grupos de filiação.
Entre os bantu, a exogamia familiar e clãnica e a endogamia
tribal são normas rígidas e rigorosas, embora em certas regiões se atenuam.
Este processo obriga pessoas que não são parentes,
pertencentes em grupos separados, a contrair matrimónio. Neste caso, é de notar
que a parentela mítica exige a exogamia e regula os matrimónios.
Vários foram os antropólogos, sociólogos e historiadores que
deram o seu contributo na explicação deste processo.
Na opinião de H. Spencer, as mulheres apanhadas nas lutas
dos grupos primitivos não eram só como escravas mais também como troféus. Esta
particularidade dava-lhes um valor extrínseco em relação as mulheres do grupo.
Segundo J. Lubbock, sugere que os homens para se apoderarem
de uma mulher, sem lesar os direitos do seu grupo, não tinham outro forma senão
raptar mulheres em grupos estrangeiros.
Já E. Durkheim, o pai da sociologia da educação, atribui a
sua origem no totemismo, isto é, ninguém pode se casar ou relacionar-se
sexualmente com quem tem o mesmo totem, porque o sangue comum encerra perigos mágicos,
sobretudo na menstruação.
A exogamia está limitada pelo tabu do incesto, isto é, o matrimónio
apenas é proibido entre consanguíneos imediatos.
No clã onde o parentesco é místico e a genealogia vem
marcada pela descendência comum de um nome, brasão ou totem, pesam tabus
incesto sobre o matrimónio realizado entre os seus membros. Pode dar-se uma exogamia
clãnica que aceite matrimónio entre parentes próximos, mas pertencentes a clãs
diferentes, neste a inclusão no clã pode realizar-se por meio de pai ou da mãe,
pelo sistema de linhagem.
Portento, a exogamia clãnica consolida a expansão, a
comunicabilidade, a solidariedade e a conquista de novas relações sociais e
alianças e pactos políticos.
1.2.2 A poligamia.
Antes de começarmos a falar sobre a poligamia na comunidade
ou sociedade bantu, gostaríamos em primeira instância tratar do conceito de
poligamia.
Por poligamia4 se entende como sendo o regime
familiar em que o homem tem varias esposas. Aparece com maior freqüência a
poligamia sucessiva, quando um homem arranja uma nova esposa sem antes repudiar
as antecessoras. A poligamia é, simultaneamente, quando um homem vive ao mesmo
tempo com
4.
Poligamia, do grego
muitos matrimônios.
No reino animal,
a poligamia se refere à relação onde os animais mantêm mais de um vínculo sexual no período
de reprodução. Nos humanos, a poligamia é um tipo de relacionamento amoroso
e sexual entre mais de duas pessoas, por um período significativo de tempo
ou por toda a vida. É permitida por algumas religiões
e pela legislação de determinados países
|
varias esposas em regime familiar e
as atende juntamente com os filhos; ou quando um homem vai unindo as sucessivas
mulheres, isto é, uma substituindo a outra e, deixando de ter, com a
antecessora, relação sexual e econômica.
Na comunidade bantu, a média do regime poligâmico reside no
facto de se possuir duas ou três esposas. Mais os grandes chefes e raros
potentados juntam entre dez e vinte cinco mulheres.
Alguns vêem na poligamia uma sobrevivência dum suposto “casamento por grupos”. A poligamia não
tinha antes aceitabilidade entre os bantu, mas, mais através dos provérbios: «uma
mulher não constrói uma aldeia», «um dedo só na consegue introduzir os grãos de
milho cozido na boca», uma só flecha não é capaz de matar uma serpente», a
poligamia passou a ter um certo prestigio.
A poligamia não é um fenômeno isolado, ou seja, individual,
mas sim social e colectivo, pode ser considerado como uma expressão da
personalidade cultural africana. Segundo esta concepção, as mulheres e os
filhos autorgam prestigio ao homem, porque são os símbolos tangíveis deste
poder de vida, que deve ser respeitado e continuado na vida do grupo familiar.
A poligamia aumenta o número de relações sociais duma família e contribui para
a sua integração na sociedade.
A criação de
múltiplas alianças matrimoniais, através da poligamia, e pela prole numerosa,
colabora no enriquecimento comunitário. Neste contexto se deve apreciar o
fenômeno da poligamia como a imagem e
fertilidade da vida, de continuidade da linhagem, de realização do grupo,
também de riqueza, de autoridade, de encarnação dum conjunto de costumes de
regras de vida...
Assim, o polígamo, na sociedade tradicional bantu,
concretiza a “figura do ideal humano”. Encarna na sua pessoa as tendências do
grupo. Concretiza na sua pessoa, a comunidade, o equilíbrio, a comunicação da
vida, os laços com os outros grupos, a riqueza, a defesa dos bens, a autoridade
religiosa e física. O polígamo é aos olhos dos outros, a imagem do dom de si
mesmo à comunidade. A poligamia prestigia o homem porque aumenta o seu prestígio
social. Os filhos numerosos outorgam autoridade, influencia, respeito, admiração,
inveja e veneração patriarcal; factos e motivos que fazem dos chefes bantu
serem obrigatoriamente polígamo. Pois que, para se consolidar, assegurar,
potenciar e vitalizar o poder, o chefe deve gerar muitos filhos.
1.2.3 Classes e castas.
Na sociedade tradicional bantu não existe a noção de classe
derivada do factor económico. Não existiu nem mesmo o contrato de trabalho ou a
propriedade privada dos meios de produção; existiu sim a noção de castas, mas a
partir de critérios políticos, religiosos, mágicos e filosóficos, isto é, da
noção de prestígios. As castas são definidas, isto é, são grupos sociais nos
quais se entra por nascimento e se justificam pela tradição e por princípios
culturais e religiosos.
A organização bantu em castas é muito peculiar. Nunca supõe
barreiras definitivas e insuperáveis, visto que a protagonista da vida é a
comunidade. Isto dá um carácter extremamente humano a estas sociedades. Embora
se verifiquem algumas diferenças ocasionadas pelas castas, estas não se parecem
tão extremistas como na Índia, pois a sociedade bantu é aberta.
Existem entre os bantu alguns estratos sociais
institucionalizados; a função politica era prerrogativa de um estrato com
grande influencia, por ser herdeiro do clã mais forte, e assim consegue
impor-se aos demais.
Nos grupos bantu reduzidos e mais primitivos, os únicos estratos
sociais formam-se a partir da idade e do sexo. Quando a sociedade cresce, a família
herdade ira do fundador ou do conquistador assegura a chefia ocupando o mais
alto grau da escala social.
Quando estes grupos atingem um maior desenvolvimento, através
do contacto pacífico ou guerreiro com outros povos, surgem novas formas de estratificação
social. As desigual idades sociais, além das originadas pela idade, sexo,
consanguinidade e chefia, partem de iniciativas particulares que a comunidade
aceita como proveitosas e de acções que consagram um valor pessoal em consonância
com as exigências e necessidade comunitárias.
Surge assim a aristocracia dos guerreiros e dos caçadores
que formam um estrato diferenciado, privilegiado e especializado. Nas suas
linhagens acumulam-se lendas e ritos de um estilo e mentalidade que lhe são próprios.
Guerreiros famosos e alguns caçadores deram origem, com os
seus feitos, a uma genealogia aristocrática prestigiada. Outro grupo que também
merecem atenção é os artesãos; os especialistas de magia (curandeiros e adivinhos)
que são considerados seres diferenciados e sacralizados. Quanto aos escravos e
seus descendentes, estes formam a casta mais baixa.
Os chefes, os cabeças de linhagens, os velhos e notáveis,
herdeiros de homens prestigiosos, formam a casta mais categorizada. Apoiam-se
no prestígio e autoridade dos seus ascendentes que se impuseram a outros clãs
ou deram origem à corrente vital comunitária como epónimo. Esta aristocracia
estende-se a todos os consanguíneos e ocupa as chefias hereditárias.
Como pensadores, fazem convergir todos esses elementos para
o bem comum. Conhecem a ética e são hábeis no manejo do direito ancestral, como
sedimento de séculos de experiência comunitária. Dispõem de um sistema de
direito coercivo eficaz, algumas vezes com ameaças e sanções magicas. Pois o
castigo é impregnado de interferências do mundo invisível ou de inteiração
vital.
Esta casta faz girar na sua órbita os personagens mais
influentes como agricultores experientes, artistas e especialistas da magia.
Esta combinação de aristocratas, tecnocratas e hierarquias religiosas torna-se
compacta e, por vezes, impenetrável. Assim, a casta possui os conhecimentos
intelectuais tradicionais e técnicos e domina os poderes mágicos. Conhece a
história do grupo, os seus ritos e costumes. Interpreta-os e cria jurisprudência.
Vigia, define e interpreta a tradição, defende a ética e promove o culto.
Portanto, quem não penetra nas profundas da sociedade bantu,
não pode perceber-se de que no seu seio existem estratos sociais; pois eles não
se distinguem pelo modo de vida, vestuário ou riqueza, mas sim pela ascendência.
Assim, pode se resumir que os estratos sociais, as castas,
da sociedade bantu, nobreza ou aristocracia, formada pelos chefes, guerreiros ou
caçadores destemidos e, os que de algum modo manejam o poder mágico, constituem
uma casta sempre temida e respeitada; os especialistas em algum ofício ou arte
gozam de especiais privilégios e considerações; os chefes de linhagem, os anciãos
e ministros conselheiros constituem a classe média; os escravos e seus
descendentes constituem a mais baixa casta e o povo, a grande massa dos homens
livres, dos cidadãos por direito de nascimento, consanguinidade idêntica
corrente vital, constituem os que não possuem qualquer qualificação.
Mas, convêm ressaltar que estas distinções não e nunca
constituem barreiras definitivas ou insuperáveis, visto que a comunidade é
protagonista da vida bantu. Os diferentes estratos sempre se subdividiram e
misturaram ao ponto de se concluir que não estão baseados em nada mais do que
num sistema convencional de sucessão hereditária.
1.2.4 Divisão do trabalho
por sexo.
A sociedade bantu observa com rigor as tradições que impõe
as divisões das ocupações e trabalho por sexo. A aglutinação econômica e
produtiva dos dois sexos dá resultados positivos para a família e para a comunidade.
Esta divisão se encontrava nas sociedades de economia mais rudimentar, e é
universal no tempo e no espaço. Pois os factores económicos e as experiências
da vida, em estados culturais primários, determinaram esta separação.
Assim, o homem, por ser o mais forte, foi sempre o caçador,
o guerreiro e o desbrava dor do terreno, quando se fixam num lugar e, também a pastorícia
exigia liberdade e resistência masculina.
Diante desta mobilidade masculina, a mulher encontrou sempre
um campo mais restrito de actividade por causa das frequentes gestações e do
cuidado dos filhos. Tinha de permanecer em casa e ocupar-se dos trabalhos
condizentes com a situação e complementares dos trabalhos do homem que sempre
precisou de um lar para repousar. Portanto, não nos esquecendo, é de dizer que
a divisão de trabalho é anterior a agricultura e domesticação de animais,
vantagem importante, porém conseguida quando começou a agricultura.
Desta feita, para os bantu, a mulher é a agricultora, mãe,
esposa e dona de casa. O homem é livre para caçar e sair de casa, uma vez que os
trabalhos que exigem força física e coragem pertencem a ele.
A separaçao de trabalhos condiciona, naturalmente, o matrimónio
que constitui uma associação económica recíproca à qual cada um aporta o especificada
sua condição sexual e, o que é mais importante, na qual os dois necessitam um
do outro, não só para a procriação que poderia realizar-se sem matrimónio, mas
para reunir as condições imprescindíveis de convivência.
O caçador, o guerreiro e o pastor precisam de uma esposa,
dona de casa e agricultora que proporcione um lar acolhedor e que cuide dos
filhos, a sua maior realização, ao mesmo tempo em que complementa a economia e alimentação.
Por seu lado, mulher precisa de um homem de confiança que defende o lar e
complete a alimentação dos filhos.
Esta separação vista do ponto de vista sociológico, exigi o matrimónio
estável como associação económica sólida e eficiente, contraria, por evidência,
à pretendida promiscuidade e à suposta anarquia de sexos.
1.3
Religião tradicional bantu.
Designar o sistema de crenças bantu com um único vocábulo supõe
uma simplificação inexacta. Por isso, surgem confusões e deturpações que impedem
a sua interpretação, uma vez que se encontram misturadas variadas manifestações
que impossibilitam uma designação unívoca que explicite tanto o conteúdo como a
forma em que se manifesta o sentimento religioso bantu. A religião tradicional
bantu, contem elementos mais ou menos notórios como o feiticismo, o animismo, o
naturalismo, o Ancestralismo, o animantismo e o totemismo.
Feiticismo: vem designar-se por feitiço o conjunto de crenças,
cultos e ritos dos negros de África que tem por objecto a adoração de objectos
materiais, os feitiços ou “gris-gris”.
Feiticismo deriva do vocábulo português “feitiço”,
que por sua vez vem das palavras latinas “fatum,
fari”, ou de “factitius”, isto é,
objectos feitos à mão, coisas feitas, artificiais, com significado e encanto mágicos
e que, alem disso, são objectos de culto.
A palavra feiticismo apareceu, pela primeira vez, com o
termo científico e descritivo, em 1960 e num livro de Charles de Brosses, intitulado: “do culto aos deuses, feitiços ou paralelo da antiga religião do Egipto
com a religião actual da Nigéria”. Segundo Brosses, “a teologia pagã
ocupava-se do culto aos astros, um sabeismo, ou do culto não menos antigo de
certos objectos terrestres e materiais chamados feitiços, entre negros
africanos, entre os quais subsiste este culto e que, por tal razão, [chamou] de
feiticismo... e seu significado próprio refere-se em particular aos negros
africanos”5.
O feiticismo traz consigo um significado pejorativo com conotações
de baixa moralidade e índice mental inferior, alem de se apresentar confuso em
sua definição e conteúdo.
Animismo: O termo Animismo foi cunhado pelo
antropólogo inglês Sir Edward B. Tylor, em 1871, na obra Primitive
Culture (A Cultura Primitiva). Pelo termo Animismo, Tylor designou a manifestação religiosa imanente a todos
os elementos do cosmos
(Sol, Lua, estrelas), a todos os elementos da natureza (rio, oceano, montanha,
floresta, rocha), a todos os seres vivos (animais, árvores, plantas) e a todos
os fenómenos naturais (chuva, vento, dia, noite); é um princípio vital e
pessoal, chamado de "ânima", o qual apresenta significados variados:
·
Cosmocêntrica significa energia;
·
Antropocêntrica significa espírito;
·
Teocêntrica significa alma.
Consequentemente, todos esses
elementos são passíveis de possuírem: sentimentos, emoções, vontades ou desejos,
e até mesmo inteligência. Resumidamente, os cultos animistas alegam que:
"Todas as coisas são Vivas", "Todas as coisas são
Conscientes", ou "Todas as coisas têm ânima".
|
O Animismo possui três
simples regras:
·
Tudo no cosmo tem
"ânima";
·
Todo o
"ânima" é transferível;
·
Tudo ou todo que
transfere "ânima" não perde a totalidade de seu "ânima",
mas quem ou que recebe perde parte ou a totalidade de seu "ânima", o
qual será tomado pelo "ânima" doador.
A partir da década de 50,
o termo deixa de ser utilizado pela Antropologia
por ser considerado muito genérico, uma vez que se aceita que elementos
animistas estão presentes em quase todas as religiões.
Actualmente discutem-se quais
foram historicamente os primeiros cultos que deram origem a todas as religiões
e a todos os deuses. Alguns historiadores e cientistas defendem a tese de que
foram os mitos politeístas, enquanto outros afirmam que foram os cultos
animistas.
Na literatura espírita, o termo Animismo é usado para
designar um tipo de fenómeno onde é o Espírito
encarnado do próprio médium que se manifesta por ele.
Para melhor entendimento desse fenómeno, convém usarmos as
denominações utilizadas pelo estudioso espírita Hermínio Miranda, quais sejam, a de
chamarmos o Espírito, que, segundo o Espiritismo,
tem uma infinidade de existências, de individualidade, chamando cada uma
das existências do mesmo de uma de suas personalidades.
Admitida a pluralidade das existências, resta evidente que a
individualidade deve possuir um conhecimento imensamente superior ao de
cada uma de suas personalidades, pois soma ao conhecimento da actual
personalidade tudo o que aproveitou das que representou nas existências progressas.
Desse modo, na manifestação anímica, o médium
pode expressar muitos conhecimentos que ele, enquanto personalidade, não
possui. Daí decorre, muitas vezes, que não há como se saber se uma manifestação
é anímica ou realmente mediúnica, ocorrendo esta última tão-somente quando o Espírito
que se comunica não é o que está encarnado no médium.
É bom saber que não existe uma dicotomia (dualidade) entre fenómeno
anímico e fenómeno mediúnico. Na grande maioria das vezes o que ocorre é
um estado intermediário com maior ou menor participação do Espírito encarnado
no médium em relação ao Espírito desencarnado que por
ele se expressa.
Naturalismo: é uma teoria metafísica que defende que todos os
fenómenos podem ser explicados mecanicamente em termos de causas e leis
naturais. O naturalismo opõe-se ao sobrenaturalismo, teoria metafísica
teológica. O sobrenaturalismo atribui não apenas uma origem sobrenatural ao
universo mas defende que este tem uma moral própria e um propósito espiritual.
O naturalismo vê o universo como uma máquina ou organismo, desprovido de
propósito geral, apesar de partes do universo funcionarem harmoniosamente e
parecerem ter sido desenhados para essa função. Os sobre naturalistas vêem o
universo como tendo sido criado para uma finalidade, e geralmente acreditam que
nada acontece sem um propósito moral ou divino. Para os naturalistas, a
Natureza é indiferente às necessidades e desejos humanos. Para os sobre
naturalistas, Deus encheu o mundo natural com tudo o que precisamos e devemos
desejar, bem como com o que não precisamos e não devemos desejar. Estes também têm
um propósito: são desafios morais e lembranças do nosso lugar no grande esquema
das coisas.
Como afirmado acima, o naturalismo é uma teoria metafísica.
As teorias metafísicas tratam da natureza da realidade. São geralmente
divididas em ontologia, cosmologia e teologia. Ontologia é
a metafísica do ser.
Totemísmo:
(etimologicamente = tribo-clã) crê-se que há um parentesco entre o clã e uma
espécie animal ou vegetal. Julga-se, por exemplo, da união de um urso com uma
mulher. Então, o nome de seu totem vai ser urso. Este torna-se um animal
sagrado. Não se pode matá-lo, a não ser em condições especiais, em que se come
a sua carne e se bebe o seu sangue para aurir a força, a inteligência, ou a
agilidade desse animal, do totem. Há ritos de agregação ao totem.
Totem é qualquer objeto,
animal
ou planta
que seja cultuado como Deus ou
equivalente por uma sociedade organizada em torno de um símbolo
ou por uma religião,
a qual é denominada totemismo. Por definição religiosa podemos afirmar que é
uma etiqueta colectiva tribal, que tem um carácter religioso. É em relação a
ele que as coisas são classificadas em sagradas ou profanas. Segundo
Schoolcraft, analisando os termos dos totens tribais da América do Norte,
"o totem, diz ele, é na verdade um desenho que corresponde aos emblemas
heráldicos das nações civilizadas e que cada pessoa é autorizada a portar como
prova da identidade da família à qual pertence. É o que demonstra a etimologia
verdadeira da palavra, derivada de 'dodaim', que significa aldeia ou residência
de um grupo familiar".
O totemismo nas tribos bantu
transparece nas designações dos clãs que tinham nome de animais. Nas figuras
rupestres que representavam figuras que se apresentavam meio-animal,
meio-homem, nos mitos sobre animais, que, nos tempos imemoriais, eram
semelhantes aos homens e vice-versa, sobre animais transformados em homens.
O traço mais característico do
totemismo é o culto profissional. Dirigem-se preces aos fenómenos da natureza,
pedindo sorte nos seus afazeres.
Ancestralismo ou Manismo: culto às almas de defuntos, como
oferecimentos de sacrifícios. Fala-se também em Euhemerismo (Euhemero, filósofo
grego: os deuses nada mais são do que homens divinizados).
Quando, numa comunidade, nos referimos aos antepassados,
estamos a referir-nos ao fundador da linhagem ou do grupo étnico e a todos os integrantes
desse grupo que deixaram o mundo dos vivos, passando a integrar o mundo
espiritual dos antepassados. O óbito inclui ritos que “regulamentam o luto e
asseguram o estatuto do defunto que, uma vez integrado no mundo dos antepassados,
participa na continuidade do grupo”6.
Pode se acrescentar que “o rito fúnebre é … também a ocasião para uma nova redistribuição
das riquezas, através do jogo de dons e contra-dons, e de compensações
mortuárias”7.
O culto aos antepassados consiste na invocação aos
antepassados (invocação dos espíritos daqueles que já morreram), seja para protegê-los
e os
6.
Gonçalves, 2001: 13
7.
Gonçalves, 2001: 15
|
beneficiar a eles próprios, seja para proteger e
beneficiar os vivos, a comunidade, a linhagem ou o grupo étnico. O culto aos
antepassados tem por princípio a convicção de que a morte terrena não implica o
desaparecimento do espírito – antes pelo contrário, a morte terrena significa
somente a transição para um estágio de vida diferente, com a separação entre o
corpo físico (que morre, se decompõe e desaparece) e o espírito, que se mantém
vivo, numa dimensão hierarquicamente superior à da vida terrena.
O culto aos antepassados está presente nas comunidades
humanas desde há muito tempo. Há, inclusivamente, religiões que o promovem,
como é o caso da religião católica, que apregoa a necessidade de celebração de missas
pelos mortos (mais precisamente, pelos espíritos daqueles que já desapareceram
fisicamente), seja em benefício da sua alma, seja em favor e protecção dos
vivos8.
O culto e a invocação aos antepassados fazem-se através
daquilo que vulgarmente se designa por feitiçaria ou feitiço, mas
que vamos aqui designar (na esteira de Chicoadão [2005]) por wanga. De
acordo com Marc Augé9, a wanga
consiste num “conjunto de crenças estruturadas e partilhadas por uma dada
população que se liga à origem do mal, da doença ou da morte, e o conjunto das
práticas de detecção, de terapia e de sanções que correspondem a essas
crenças”. Mas é preciso acrescentar que a wanga é um processo através do
qual se realizam ritos e manifestações espirituais, se invocam deuses e se
dialoga com espíritos dos antepassados, com dois objectivos fundamentais: o
culto do mal (para provocar doenças ou morte terrena) ou o culto do bem (para
cura e para prevenção do mal)10.
Para o primeiro caso são usados os mikixi, enquanto para o segundo se
utilizam os jingombo. Tanto num caso, quanto no outro, há diálogo com os
deuses e com os espíritos dos antepassados, havendo posteriormente recurso à
flora e à fauna, em cumprimento das orientações recebidas e dos rituais
indispensáveis à pretensão. De acordo com Adam Kuper11, a função da wanga é “ritualizar o optimismo
do homem e fortalecer a sua fé na vitória da esperança sobre o medo”.
Em relação aos povos de Angola, existe tradição ancestral
de culto aos antepassados, através de ritos e manifestações espirituais que são
feitos por entidades com poder para tal12.
A sua importância é tal, que sem esse tipo de culto não seria concebível a
perpetuação do grupo ao longo dos séculos. Para os povos de Angola, não é
concebível a vida sem recurso ao apoio e orientação dos antepassados.
Depois das explicações relacionadas com a wanga e o
culto aos antepassados, vamos de seguida referir-nos à kyanda e à
mulemba, como dois símbolos (uma imagem e um local) sagrados, reconhecidos até
hoje na região de Luanda.
Com todos elementos da religião
tradicional bantu acima conceituados e brevemente desenvolvidos podemos dizer
que o bantu é essencialmente religioso, pois só pode realizar a sua existência
em perfeita comunhão com o sagrado. Para o bantu a religião é cultura e cultura
é religião, a religião
8.
cf. Martinez, 2007
9.
apud Carvalho, 1989: 281
10.
Chicoadão, 2005: 24-26
11.
apud Crema, s.d.: 2
12.
cf. Chicoadão, 2005: 33-35
|
tradicional
bantu é o elemento central da cultura bantu e, mais do que isso, ela é
considerada a mãe, a criadora de civilização. A religião tradicional dá forma, condições
e vivifica as instituições e manifestações familiares, sociais e politicas.
1.3.1 Os santuários.
As mais antigas formas de organização social deve-se, por
probabilidade, a ligação com os santuários. Os cultos dos santuários estavam
mais relacionados com extensões territoriais do que com as linhagens de possessão
e associados à curas médicas ou psíquicas. Estes cultos tinham responsabilidades
de provocar as chuvas, controlar as cheias, propiciar sucessos ao caçador e
fertilidade aos solos do agricultor. Cada culto era responsável pelo bem-estar
de todos habitantes da sua área de influência, ultrapassando as fronteiras
entre grupos sociais, o culto era dirigido por uma elite de sacerdotes e
oficiantes.
As populações primitivas, de um modo geral, sustentavam que
o mundo era dirigido por uma divindade superior, representado na terra por uma
serpente e cujo nome variava de região para região. Esta serpente vivia no cimo
das montanhas e colinas e viajava com o vento.
Os Quimbundos de Luanda conhecem os “quituta” que vivem nos
rios, bosques, rochas, fontes. Podem aparecer em forma de cobra com chifres ou
de monstro horrível e encarnar através do pai ou da mãe. Também acreditam nas “quiandas”,
sereias que aparecem na forma de pessoa, costumam ocasionar deformações
físicas.
Os génios fixam o seu habitat em lugares e árvores
especiais. Para vários angolanos, alguns embondeiros gigantes, os baobás, ficam
sacralizados com a presença de génios bons e protectores, e constroem ao pé
deles pequenas cubatas-santuários onde lhes oferecem culto. Era frequente
pendurar os cadáveres dos feiticeiros dos seus ramos, para que os génios impedissem
as suas acções nefastas. Controlam muitos lugares da natureza, quando habitam
neles, bem como as actividades humanas nesse meio.
Há génios no ar, na chuva, na tormenta, no fundo da terra, nas selvas, lagos, rios, nas nascentes, na caça e pesca, nas culturas, viagens, estepes e até nas enfermidades misteriosas.
Há génios no ar, na chuva, na tormenta, no fundo da terra, nas selvas, lagos, rios, nas nascentes, na caça e pesca, nas culturas, viagens, estepes e até nas enfermidades misteriosas.
As pessoas originárias de Luanda acreditam na
existência de seres dotados de poderes sobrenaturais. Trata-se das yanda (no
singular, kyanda – sereia, como já referido acima), que são espíritos da
natureza criados por Deus e estão ligados aos meios aquáticos (rios, lagos,
lagoas e mar), aos quais estão associados mitos e cultos. As yanda são
“seres bondosos” que se encontram também em terra, nas florestas ou nas
montanhas, sendo o embondeiro a sua árvore de eleição13.
Uma kyanda é um génio da natureza, que está
omnipresente porque traduz a ligação do ser humano ao meio em que vive. Não têm
forma própria nem sequer forma constante. Não é fácil isso acontecer, mas pode
ver-se uma kyanda. Nesse caso, “o que se vê, normalmente, não são mais
que sinais delas [das yanda], luzes, lençóis de luz debaixo das águas,
fitas, fitas de muitas cores”14.
Virgílio Coelho adianta que “tanto no mar, como nos rios,
13.
Carvalho, 1989: 285, Coelho 1997a: 147-149
14.
Carvalho, 1989: 284-285
|
nas lagoas, nas cacimbas ou nas nascentes, as marcas
da presença destes seres apresentam-se com o «aspecto humano», de cor branca,
alva ou cristalina, completamente envoltos em «longos cabelos» também brancos,
que conjuntamente com as cintilações de luz e os milhares de pontos luminosos,
acrescidos de sons vibrantes e envolventes, conduzidos por ventos ruidosos e
remoinhos, caracterizam o universo da sua presença”.
As yanda nutrem especial atenção pelas
crianças, sendo atribuído a elas o nascimento de gémeos ou ainda a presença de
sinais15,
que lhes outorgarão poderes espirituais16.
No caso de nos nascer um filho associado à kyanda, há necessidade de
recurso ao adivinho para saber qual o seu local e a que kyanda se deve
prestar tributo. Ruy Duarte de Carvalho17
descreve o que é preciso fazer, neste caso: “é o kimbanda quem vai
adivinhar qual é o sítio dele, a lagoa, a cacimba onde tens de fazer o tratamento.
E é aí que vais fazer a mesa. Uma toalha branca, copos novos, pratos
novos, tudo novo, bebidas finas, vinho do Porto, agora whisky, cerveja se
quiser; gasosa também, que eles têm miúdos, … passas de uva, gengibre, cola, o que você encontrar que é bom e
fino; cigarros e fósforos também; tudo aquilo que é difícil de encontrar e mais
caro é o que eles gostam mais. E deixa ficar [no local indicado]. Eles vêm
buscar.” É assim que se faz o tratamento. Depois disso, a kyanda passa a
ser “tua amiga”, passa a ajudar, a proteger e a encaminhar.
O culto da kyanda marinha é praticado em
alturas precisas ou sempre que haja falta de peixe. Mas trata-se de um culto
privado, no sentido em que tem a participação ou a presença, apenas, de pessoas
da comunidade. O culto é designado por kakulu e acredita-se que dele
resulte prosperidade, que se traduz através da boa pesca.
Dentre os locais onde se faz actualmente o culto às yanda,
podem citar-se a Ilha do Cabo (mais concretamente, a ponta da Ilha), as
cercanias da sede do município de Cacuaco, a ilha do Mussulo e Kalumbu
(conhecido como o lugar do Nga Mbangala, no município de Viana). Quanto a antigos
locais de culto, podem enumerar-se as cercanias da Fortaleza de S. Miguel e a
lagoa do bairro Indígena, cuja kyanda “levava anualmente, sem falta, uma
ou duas crianças que desapareciam no seu seio, umas vezes por longo tempo,
reaparecendo algumas vezes o corpo do falecido, após a baixa das águas; outras
vezes, desaparecendo definitivamente na sua zona mais densa”18. Segundo Virgílio Coelho,
quando alguém é levado por uma kyanda, transforma-se em seu filho e
passa a “viver” com ela.
Quanto a mulemba (mulembeira) e o embondeiro (ou
imbondeiro) estão ligados ao poder político, ao poder espiritual e à vida
social dos grupos populacionais que habitam o espaço territorial angolano.
Nesta breve referência ao embondeiro, vamos dizer que, em Luanda, ele está
normalmente associado aos gémeos e à kyanda, mas serve também como instrumento
de acção espiritual – por exemplo, para colocação de pregos ou outros objectos
cortantes, com “pedidos de justiça e de vingança”.
15. Uma mancha ou
uma marca com que a criança nasça é associada à kyanda. Também os
gémeos são considerados yanda [cf. Coelho 1987 e
1997a: 149-150, Carvalho 1989: 286-287].
16.
Dutra, 2007: 135
17.
Carvalho, 1989: 286
18.
Coelho, 1997a: 158
|
No que diz respeito à mulemba19, o seu poder e a sua utilidade são tais que,
antigamente, os chefes povoadores dos ndongo se faziam sempre acompanhar de uma
estaca de mulemba do local de origem, para plantarem no centro do local de
destino20.
Para além de ser considerada “árvore do poder”, a mulemba é a “árvore do
casamento”, a “árvore das alianças” e a “árvore da vida”, visto que “assegura a
estabilidade da família e o seu alargamento através de alianças matrimoniais”21. Segundo nos diz Custódio
Gonçalves 22, a mulemba é “expressão da
descendência matrilinear, símbolo da origem mítica [dos ndongo] e da
continuidade vertical do parentesco natural e da solidariedade de linhagem”.
A localização da mulemba, no centro da aldeia, é
demonstrativa de tudo quanto ela representa ou simboliza, que podemos aqui
resumir no seguinte: estabilidade, protecção e segurança, poder, sobrevivência,
cura e sacralidade. Convém destacar que a designação “mulemba” encerra em si o
termo lemba, que (entre os ndongo) está associado a:
• Família, relações de parentesco e alianças familiares;
• Tio mais velho, que é o representante das antigas linhagens
e,
Simultaneamente, o “senhor da união” matrimonial;
• Antepassado feminino do lado materno, que favorece a
fertilidade e a
procriação e “prende os
descendentes uterinos a um mesmo antepassado remoto”.
Além disso, a
palavra mulemba está associada ao verbo kulemba, que significa “ser
aceite como noiva(o)” e “oferecer uma prenda de casamento”.
Pelo que acaba de ser dito, resulta que, entre os ndongo,
a manutenção e a prosperidade da família e da comunidade estão ligadas à
mulemba. Seja a fertilidade (com o que sempre esteve associada a prosperidade
da família), seja a protecção familiar, seja a união de famílias, seja ainda a
bonança, estão entre os ndongo associadas à mulemba. Da mesma forma, a
prosperidade da comunidade está associada à mulemba.
A mulemba está também ligada à fertilidade do solo e,
portanto, ao “espírito da terra”24.
Mas a mulemba é ainda a “árvore do chefe”, pois (como já foi dito) representa o
poder político e o poder social, bem como as respectivas instituições. Pode,
mesmo, dizer-se que a mulemba é considerada fonte de poder político e fonte de
autoridade entre os ndongo.
Vejamos, a terminar este item, o lado espiritual daquilo
que a mulemba representa. Trata-se de uma “árvore sagrada” que permite estabelecer
a ligação entre os seres humanos e o mundo dos espíritos, “por analogia à sua
própria constituição, com a raiz bem implantada no solo e a copa abrindo-se
larga para o céu, desempenhando inúmeras funções nas esferas da religião, do
19. Mulemba
ou incendeira é a ficus psilopoga, ficus welwitchii ou
ficus thonningii,
que possui tronco forte e copa larga e frondosa, e é apreciada pela sua sombra
nos meses quentes e pelo abrigo nos meses frios. A árvore cresce
rapidamente, a partir de estacas. As folhas e ramos são consumidos por antílopes e elefantes, enquanto o fruto
(figo) é consumido por seres humanos,
aves e morcegos. As fibras da madeira são utilizadas para construção de
esteiras e cordas. O látex leitoso,
bem como infusões e decocções da casca, raízes e fibras são utilizados com fins terapêuticos e medicinais [cf. Núcleo s.d.].
20. Se daí
resultasse nova árvore, era sinal de que a nova aldeia podia ser criada
[Gonçalves, 1984: 678], ou seja, havia aprovação dos antepassados para
execução do novo projecto de expansão e fixação naquele local [Gonçalves, 1980: 95, Aço, 1992: 38-39; cf. Altuna,
1993: 238].
21. Coelho, 1987: 293-294.
22. 1984: 678.
23. Coelho, 1987:
293-295.
24. cf. Gonçalves,
2001: 14.
|
poder e da família”. A sua sacralidade está
relacionada com a ligação aos antepassados, que auxiliam os habitantes da
comunidade no dia-a-dia e garantem o bem-estar, a prosperidade e a estabilidade
social.
A vibração da folhagem anuncia a presença dos espíritos
dos antepassados, que habitam a árvore. Tendo em conta a presença dos espíritos
dos antepassados, a mulemba é alvo de cuidado, atenção e respeito por parte de
todos os integrantes da comunidade.
A ligação da mulemba aos antepassados está ainda
relacionada com a adivinhação e a cura de enfermidades e outros males de que as
pessoas da comunidade padeçam. Neste caso, o recurso aos antepassados, para adivinhação
e solução, tem em vista a superação dos males que aflijam todos quantos
pertençam à comunidade que habita à volta da mulemba.
1.3.2 Sociedades secretas.
As sociedades secretas possuem uma velha tradição
negro-africana, em geral, e bantu, em particular. Encontram-se
em quase todos os grupos, com formas e fins diversos. São características dos
povos bantu.
São chamadas “secretas” porque, o seu carácter, ritos e a própria
existência são desconhecidas, mas é difícil ignorar a sua actividade como
crimes misteriosos, desaparecimentos e delitos inexplicáveis levam o selo mais
ou solapado de algumas destas sociedades.
Embora tenham existido desde que a sociedade bantu se foi
estruturando com formas sociais e politicas mais ou menos definidas, mas o
impacto com o colonialismo ocasionou uma decomposição que as fez evoluir para
novas formas.
Muitas afastaram-se da sua finalidade magico-religiosa,
eficaz terapêutica social, para se transformarem em instrumentos de reacção.
Degeneraram em grupos de violência, para efeitos de vinganças pessoais ou
colectivas e semear o terror. Partindo da clandestinidade e da prepotência do
intruso e da ruptura com a tradição que este exigia.
Nessas sociedades,
desorientada por uma força desculturada, bastava o terror de um antepassado, o
capricho de um chefe, a maldade de um adivinho, a sede de vingança ou a
necessidade de criar o terror entre a população, como salvaguarda da tradição,
ou os sombrios interesses de um grupo para dar origem a uma sociedade secreta
especializada.
Envoltas numa areóla de ministros, suscitavam sentimentos de
curiosidade, respeito e medo. Dentro dos grupos comunitários, elas eram grupos
com maior poder e coesão.
Muitas destas sociedades servem de travão a uma tirania
ocasional de um chefe ou uma oligarquia; reagrupam o clã, delimitam a influência
feminina, imunizam o organismo social contra vírus nocivos e, inclusivamente,
expulsam os corpos estranhos. Os membros destas sociedades são Senhores do
poder judicial e executivo, cumprem, a partir da clandestinidade, as suas
sentenças implacáveis.
As suas reuniões são realizadas em lugares solitários, na
espessura da noite e longe das aldeias e, se algum estranho os descobre é
eliminado e mudam de lugar para evitar que o espírito do assassinado vá
anunciar ao chefe o lugar das conspirações. Ninguém as denuncia, caso alguém
mais saiba, com medo de represálias. As mesmas estão abertas apenas a indivíduos
com qualidades específicas, quase sempre das castas altas. São eles que escolhem
os candidatos ao ingresso e aquele que não aceita são eliminados.
Disfarçam-se e mascaram-se, com fins lúdicos, mas para
intimidar. Eles tornam-se misteriosos e temidos pelas mulheres, crianças e
pelos não iniciados.
Como para o bantu não existe separação entre o profano e o
religioso, tudo deve adquirir um fundamento religioso e mágico. Os membros
destas sociedades são conscientes de formar uma sociedade mágica. Alguns têm
como finalidade defender a religião tradicional e entregam-se à revolução do
culto dos antepassados, à revitalização da tradição religiosa e a restauração
dos ritos sacrificiais.
Todas as sociedades secretas masculinas excluem as mulheres
que também formavam outras para compensar o domínio masculino. Depois da iniciação,
elas mudam de nome pelo de um homem.
Como dito antes, com o aumento das populações, a desclanização
galopante, a acção dos missionários e sobretudo, a centralização do poder, foram
debilitando as suas funções, prestígios e poder. A desagregação tribal
dificulta o sigilo e a vida económica minimiza as suas vantagens.
1.3.3 O preço do sangue.
A lei da vingança é uma das maiores expressões de
solidariedade. É inevitável aplicá-la quando um membro do grupo é assassinado.
O assassinato de um membro sinonimiza ofensa ao grupo, como tal, qualquer
membro pode vingar o sangue de seu parente matando qualquer elemento do grupo
em que o ofensor pertence, visto que os seus membros são co-responsáveis. Todos
são responsáveis por cada um e um por todos.
A vingança é uma obrigação sagrada, porque o crime é um
atentado ao valor estrutural mistico-comunitario, a vida. No interior do grupo também
é aplicada.
As vezes a morte é causada por um agente externo (um
antepassado indignado ou um espírito de má índole) e é necessário descobri-lo. Assim,
devem ser aplicados pela comunidade com uma oferenda ou um sacrifício.
Só a morte satisfaz a justiça e aplaca o espírito do defunto
que não mais perturbará a sua família que satisfaz os deveres de reparação. Em
certas regiões como indemnização pela perda de vidas, usou-se a moeda humana, espécie
de preço de sangue e, que as vezes se identifica com a escravatura.
Estas praticas testemunhas a valorização da pessoa humana
porque se fundamentam no conceito de que a perda de um indivíduo só se paga com
outro indivíduo, isto é, não há dinheiro que pague o valor de uma humana. Uma
lei que remonta os períodos cristã, como reza a Bíblia em Êxodo 21:22-25.
Conclusão
À guisa de conclusão, vamos começar por recordar que entre
os bantu a primeira célula social é a família, seja ela elementar, conjugal,
nuclear ou reduzida que compreende pai, mãe e filho. Mas a família alargada é
entre e para os bantu a verdadeira família. Ao conjunto de diversas famílias
alargadas se formam uma densa rede totalizante que, à base de comunidades e
solidariedades, estrutura a sociedade que se compraz em ser essencialmente
comunitária. Assim, os membros se tratam como parentes. Chamam “pai” ao tio e “irmão” ao primo. Sem se importarem com a proximidade do
parentesco, as designações de “pai” e
“irmão” vão-se alargando
indefinidamente.
No interior da comunidade (sociedade) bantu o chefe
desempenha uma função fundamental no grupo. Como pessoa mais qualificada e
vitalmente mais poderosa, é o guia necessário da comunidade e o guarda das suas
tradições e da sua coesão. As motivações religiosas marcam o ritmo e
caracterizam a sua mentalidade. O chefe constitui, com os notáveis e os
anciãos, o grupo mais autorizado, o estrato social mais prestigiado e, como
instituição presidida por um “enviado carismático”, que dirige, pensa,
solidariza, vigia e procura o bem da comunidade. Quem vê o chefe contacta com a
vida que arrancou do hipónimo, e contempla este e os outros antepassados. O
chefe é o canal de conexão directa com a corrente vital ancestral. O chefe é o
sangue e o espírito dos antepassados, prolongamento e deposito comunicante do
dinamismo vital, pessoa sagrada, responsável pela comunidade perante os
antepassados, seu delegado por capacidade e eleição e a sua encarnação, pois
que, por intermédio dele, vivificam a comunidade a comunidade.
O bantu é essencialmente religioso,
pois só pode realizar a sua existência em perfeita comunhão com o sagrado. Por
isso, para o bantu a religião é cultura e cultura é religião. Onde se podemos
encontrar elementos mais ou menos notórios como o feiticismo, o
animismo, o naturalismo, o Ancestralismo, o animantismo e o totemismo.
É de ressaltar que uma das mais antigas formas de organização
social, entre os bantu, se deve a ligação com os santuários. Os cultos dos
santuários estavam mais relacionados com extensões territoriais do que com as
linhagens de possessão e associados à curas médicas ou psíquicas. Estes cultos
tinham responsabilidades de provocar as chuvas, controlar as cheias, propiciar
sucessos ao caçador e fertilidade aos solos do agricultor. Cada culto era
responsável pelo bem-estar de todos habitantes da sua área de influência,
ultrapassando as fronteiras entre grupos sociais, o culto era dirigido por uma
elite de sacerdotes e oficiantes
As sociedades secretas, também são grupos de indivíduos
existentes na sociedade bantu que possuem uma velha tradição negro-africana, em
geral, e bantu, em
particular. Encontram-se em quase todos os grupos, com formas
e fins diversos. E estes grupos são características peculiares dos povos bantu.
Muitas destas sociedades servem de travão a uma tirania ocasional de um chefe
ou uma oligarquia; reagrupam o clã, delimitam a influência feminina, imunizam o
organismo social contra vírus nocivos e, inclusivamente, expulsam os corpos
estranhos. Os membros destas sociedades são Senhores do poder judicial e
executivo, cumprem, a partir da clandestinidade, as suas sentenças implacáveis.
Por fim, uma das praticas que testemunham a valorização da
pessoa humana é o preço do sangue, uma lei de vingança, uma das maiores
expressões de solidariedade que se fundamentam no conceito de que a perda de um
indivíduo só se paga com outro indivíduo. Esta vingança é uma obrigação
sagrada, porque o crime é um atentado ao valor estrutural mistico-comunitário –
a vida. A sua aplicação é inevitável quando um membro do grupo é assassinado
por um membro de outro grupo e mesmo no interior do grupo também é aplicada.
:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::/
/::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Sugestões
Dentro dos limites da cidade de Luanda, encontra-se a
árvore conhecida pela designação “Mulemba wa isi ya Ngola” (mulemba das terras
de Ngola) ou, abreviadamente, “Mulemba wasia Ngola”, que marca os limites do
Reino do Ndongo e, simultaneamente, a soberania de Ngola-a-Kilwanji kya Samba (Tal árvore encontra-se nos limites
do actual bairro luandense da Petrangol, à comuna do Ngola Kiluanji, já nas
imediações da área limítrofe de Cacuaco). De acordo com Samuel Aço,
trata-se de uma árvore “de extraordinário porte,
cujo tronco poderoso demonstra grande longevidade e possui uma copa
frondosa, imensa, que torna o local sempre fresco e aprazível”.
Trata-se de um dos mais importantes locais de culto e de
veneração da região de Luanda e arredores desde há alguns séculos. Ao contrário
do que sucede com a kyanda, este é um local de culto público, onde cada
um pode depositar as suas oferendas, evocar os santos e fazer as suas preces.
Tal como sucedeu em décadas passadas, nos dias de hoje é
comum verem-se pessoas a dirigir-se a esse local, nas mais variadas ocasiões.
Uma das mais importantes ocasiões de depósito de oferendas é o 11 de Novembro de
cada ano, data em que se celebra o aniversário da independência política de
Angola. Nessa ocasião, para além de prosperidade para si e para os seus, os
luandenses pedem anualmente que se preserve a independência de Angola, que
reinem entre nós a paz e a concórdia e que os angolanos possam rapidamente
ocupar o lugar que lhes está reservado no sistema-mundo.
Outro caso, referido por Samuel Aço, tem a ver com a cerimónia
de “estender a mesa aos antepassados”, que é realizada com alguma periodicidade
no local, com o fim de “apaziguar os espíritos” e de solicitar a sua
contribuição para o bem-estar e a prosperidade dos integrantes do grupo.
Como se vê, os descendentes de Ngola-a-Kilwanji kya Samba continuam
a considerar a mulemba wasia Ngola local sagrado onde, em momentos
precisos e em caso de necessidade, se recorre invocando os antepassados.
Trata-se de um local histórico a preservar em Luanda, seja
devido à sua secularidade, seja devido à sua importância na preservação da
comunidade e do grupo étnico ndongo, seja ainda devido ao papel que pode jogar
no quadro do resgate dos valores morais e dos princípios cívicos dos
luandenses.
Em face de tudo quanto aqui foi dito, sugere-se maior
atenção ao local, que para além de sagrado, é considerado sítio histórico e
pode contribuir decisivamente para o resgate dos princípios cívicos e morais na
cidade de Luanda.
A kyanda é um ser maravilhoso que ajuda quem a ele
recorre, o mesmo acontecendo com a mulemba, que é considerada a árvore da vida,
das alianças e da fertilidade (humana e do solo). A kyanda e a mulemba
são, pois, dois elementos de contacto com aquilo que é sagrado, servindo simultaneamente
como garante da estabilidade e da prosperidade.
A estes dois elementos da tradição tumundongo, que convém
não só preservar, mas também dar a conhecer aos jovens. O ideal seria
incluí-los no programa de ensino, tendo em vista a sua utilização no quadro do
processo de resgate dos valores cívicos e morais. Kyanda e mulemba
sempre estiveram ligados ao respeito pelos princípios sagrados, pelas normas
morais e pelos princípios de actuação cívica das pessoas. Devem, por isso,
passar novamente a ser utilizados com o mesmo fim, no quadro do processo de
resgate da tradição e dos valores cívicos por parte da juventude da região de
Luanda e arredores.
Referências bibliográficas
·
AÇO, Samuel: “Mulemba Waxa Ngola, sítio histórico de
Luanda”, Austral, nº 0, 1992.
·
ALTUNA, Pe. Raul R. de
Asúa: Cultura Tradicional Bantu, Luanda: Secretariado Arquidiocesano de
Pastoral, 1993
·
ADOLFO, Sérgio Paulo: “Principais divindades que chegaram ao
Brasil”, http://www.inzotumbansi.org/malunda13.htm,
s.d.
·
CARVALHO, Ruy Duarte
de: Ana a Manda. Os filhos da rede, Lisboa: Instituto de Investigação
Científica Tropical, 1989.
·
CHICOADÃO: As
origens do fenómeno Kamutukuleni e o direito costumeiro ancestral angolense
aplicável, Lisboa: Instituto Piaget, 2005.
·
COELHO, Virgílio: “La place des jumeaux dans le système religieux
des Ndongo (Ambundu), Angola”, Paris: École Pratique des Hautes Études
(trabalho de licenciatura), 1987.
____ 1997a:
“Imagens, símbolos e representações
«Quiandas, quitutas, sereias»: imaginários locais, identidades regionais e
alteridades. Reflexões sobre o quotidiano urbano luandense na publicidade e no
universo do marketing”, Ngola–Revista de Estudos Sociais, nº 1, pp.
127-191.
____ 1997b:
“Os objectos/símbolos sinistros ou as
«marcas portadoras de desgraça e do mal»: notas esparsas para uma sociologia do
conhecimento sobre a noção do «bem» e do «mal» nos miseke de Luanda”, Prefácio a Jacinto de Lemos O pano
preto da velha Mabunda, Luanda: Instituto Nacional do Livro e do Disco, pp.
7-16.
____ 2003:
“Há ainda estruturas do poder tradicional
na província de Luanda? O caso paradigmático do mwene soba Mbanza Kalumbu”, 1º Encontro Nacional sobre
a Autoridade Tradicional em Angola, Luanda: Editorial Nzila +Ministério da
Administração do Território, pp. 309-317.
·
CREMA, Roberto: “Mitos
e ritos. Breve resenha”, http://www.dialogosdoser.com/artigos/roberto_artigos/artigo06.pdf,
s.d.
·
DUTRA, Robson Lacerda:
“Entre Cassandra, carmina e kianda, feminino e nação”, Revista Eletrônica
do Instituto de Humanidades, vol. VI, nº 22, pp. 132-146, 2007,
[http://publicacoes.unigranrio.br/index.php/reihm/article/view/351/336]
·
ELIADE, Mircea: O Sagrado e o Profano,
São Paulo: Martins Fontes, 1992.
·
GONÇALVES, António
Custódio:
____ 1984:
“Simbolização do processo político e dinamismo sócio-cultural numa sociedade
tradicional: abordagem histórica e sistémica”, Análise Social, vol. XX,
nº 84, pp. 663-683
____ 2001: “Rituais tradicionais de
solidariedade: Religião e tensões entre finitude e infinitude”, Luís A. O.
Ramos et al. (org.) Estudos em homenagem a João Francisco Marques,
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol. II, pp. 9-17 [Disponível
em: htpp://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2815.pdf
·
MARTINEZ, João Flávio:
“Culto aos antepassados”, 2007, http://www.cacp.org.br/estudos/artigo.aspx?lng=PTBR&article=917&menu=7&submenu=4
·
RIBAS, Óscar: Ilundu. Espíritos e ritos
angolanos, Porto: Edições Asa, 1989.
·
TOKAREV, Serguei: História das religiões, Ed. Progresso, Moscovo, s.d.