segunda-feira, 6 de agosto de 2012

ORGANIZAÇÃO SOCIAL DOS BANTU


Introdução

São várias as hipóteses sobre a origem dos povos bantu, algumas versões rezam que saíram das férteis terras do sudeste sariano ou do lago Chade. Outros afirmam que surgiram da região dos grandes lagos, na África Central, ainda outros dizem que vieram da Ásia Menor e posteriormente se foram fixando nas regiões dos grandes lagos, Sudão e a posterior emigrado para o sul. Ao passo que outras teorias dizem que os bantu entraram na África pelo istmo do Suez ou através do mar vermelho e forma se fixando na Abissínia e futuramente migraram para o Sul e sudoeste.
Apesar desta polissemia de conceitos sobre a origem dos bantu, a realidade é que os bantu em contínuo movimento migratório a procura de melhores lugares e condições de sobrevivência se foram sedentarizando e criando uma unidade étnica e cultural baseada nos sistemas de parentescos e grupos de filiação na consangüinidade, criando pequenas aldeias geridas por representantes masculinos de um único grupo.
É sobre este breve preâmbulo que, neste trabalho abordaremos a situação temática da organização social dos bantu, onde no nosso repertório trataremos comunidade bantu e sua hierarquia, a organização clãnica e tribal dos bantu bem a divisão da sociedade em castas e classes, o casamento e a religião tradicional bantu e tantos outros aspectos referentes aos bantu e sua organização social.  


  
1.   Organização social dos bantu.

A forma de organização da sociedade bantu assenta nos sistemas de parentescos e grupos de filiação baseadas na consangüinidade real ou mística, da qual se exige uma transmissão, de herança e de preferência que as liguem a uma das genealogias biológicas que toda pessoa recebe ou transmite: paterna e/ou materna. As sociedades humanas adoptam um sistema de descendência, cujo ponto de referência se situa num dos progenitores ou em ambos. Este sistema de descendência ou de parentesco é unilateral e, verificando-se dois sistemas: o patrilinear e o matrilinear. Assim, a descendência está ligada a uma só linhagem.
As relações entre pessoas que se consideram aparentadas por consangüinidade real, fictícia ou putativa, são chamadas de “parentesco”.  Pois os bantu primitivos já viviam em pequenas aldeias geridas por representantes masculinos de um único grupo de parentesco; assim, a aldeia era o lar e o centro espiritual de todos os membros da linhagem.
Uma das razões para se instaurar este sistema de linhagens deve ter sido a divisão de trabalho por sexos (assunto que iremos abordar mais adiante).


1.1 A comunidade bantu.

Os verdadeiros protagonistas da existência individual e social bantu são os grupos, as comunidades: família, clã, tribo e o reino, império ou a confederação de reinos.
O bantu não pode viver sem família nem clã, pois são dois grupos (primários, por sinal) fundamentais e vitais que dão sentido e consistência à sua vida. A família e o clã são células iniciais, vivificantes e essencialmente comunitárias que definem a cultura do indivíduo bantu. Desta feita, não se pode conceber nem explicar o indivíduo bantu isolado de uma comunidade.
A parentela cria a capa irrenunciável, onde se geram as estruturas sociais e o ambiente onde elas podem subsistir. A sua realidade místico-participante constituitiva estabelece um amplo sistema operativo, fundamento da organização social, ao situar todos os indivíduos dentro de um contexto de relações vitais e mútuas e de comportamentos funcionais e decisivos para a subsistência individual e comunitária.
Assim, a sociedade bantu se vai alargando em círculos concêntricos escalonados, sobrepostos e cada vez mais amplos, apoiando-se nas famílias, como núcleo e células-base. No entanto, ao conjunto de varias famílias se forma um clã. Quando vários clãs sentem uma origem comum, irmanados pela mesma língua, religião, tradições, costumes e espalhados por regiões contiguas, dão origem a tribo. Ao conjunto de várias tribos, com afinidades lingüísticas, geográficas ou interesses comuns, podem estruturar um reino. Assim aconteceu com os grandes impérios negros pré-coloniais que se formaram a partir da integração, conquista ou confederação de vários reinos.
Portanto, como já dissemos, a primeira célula social bantu é a família elementar, conjugal, nuclear ou reduzida que compreende pai, mãe e filho. Mas essa não é a verdadeira família bantu.
Por uma razão, as famílias nucleares, unidas e integradas entre si, são o fundamento da solidariedade que dá origem às instituições sócio-políticas as quais não são mais do que o alargamento do núcleo primário. Este, como não se pode bastar a si mesmo, para ser amparado, precisa de se apoiar em grupos mais amplos e organizados.
Esta família não forma um grupo autônomo. Vive imersa e depende do sistema de parentesco, da família alargada e do clã. Contudo, ela é o elemento básico das estruturas sociais e, pelas alianças matrimoniais, dá-se origem às alianças políticas.
A família nuclear é o pilar da sociedade bantu, embora não se possa conceber separada dos círculos mais amplos e fecundos: família alargada, clã e tribo. A família isolada, individualizada, fechada sobre si mesma e autônoma, não existe. O bantu não a concebe, pois os princípios de consangüinidade e de participação vital não a admitem. Alem disso, as condições econômicas, climáticas e geográficas impedem o seu isolamento. Por isso é que se disse que a verdadeira família bantu não é a nuclear ou reduzida, mas sim a alargada. Pois o bantu precisa de viver em conjunto, participar, sentir-se amparado e acolhido num grupo numeroso e defender-se da magia ou do homem. A participação vital como núcleo e seiva da cultura, impõe-lhe uma vida comunitária e acomodar-se no grupo, participando da mesma corrente vital comunicada pelo sangue.
Somente no matrimonio, na família elementar, o homem e a mulher realizam a mais profunda aspiração da sua existência: prolongar-se, reviver, assegurar a sobrevivência. Da mesma forma satisfazem as esperanças das suas comunidades: crescer, enriquecer-se e assegurar o patrimônio social, político e religioso. «A verdadeira família serere (pode dizer-se também da bantu) é a família maternal, “a família alargada”. Em sentido restrito, a família não é um grupo autônomo; vive na “casa comunal” da família clãnica, no sentido da “gens”. Esta é a verdadeira família negro-africana»¹.
 O bantu goza de uma comunidade muito ampla que lhe proporciona o deleite de viver sempre em família.
As diversas famílias alargadas formam uma densa rede totalizante que, à base de comunidades e solidariedades, estrutura a sociedade que se compraz em ser essencialmente comunitária. Assim, os membros se tratam como parentes. Chamam “pai” ao tio e “irmão” ao primo. Sem se importarem com a proximidade do parentesco, as designações de “pai” e “irmão” vão-se alargando indefinidamente. Os bantu encontram pais e irmãos nos lugares mais afastados.  


1.1.1 A chefia bantu.

Há um aspecto cultural muito relevante relativo aos chefes bantu. Esta hierarquia baseia-se no direito ancestral e numa concepção religiosa e profana simultaneamente e, participa da sacralidade que impregna esta sociedade.


1. SENGHOR, L. S.: fundamentos de La Africanidad. ZYX, Madrid, 1972, PP. 77; in ALTUNA, R. R. A.: Cultura tradicional bantu. Paulinas Editora, Portugal, 2006, p. 117.
 
 


Entre os bantu, o chefe de família faz a ligação directa com os antepassados, presentes na vida comunitária, cuja influência, benéfica ou nefasta, deve ser cuidada. Pela sua proximidade com eles, qualidade, poder e conhecimentos superiores, podem arrancar-lhes favores ou torná-los propícios.
Resolve os conflitos e responsabiliza-se pelo bem-estar familiar. A sua autoridade estende-se ao campo social, político, judicial e religioso. Quando a família cresce e de dilata, os velhos começam a substituí-los em determinadas funções. Aparecem os subchefes de aldeias dependentes, “pater famílias – chefe familiar” que, por sua delegação, cumprem idênticas funções.
 A sua autoridade fica limitada e subordina à dos chefes de organizações sociais e políticas superiores: clã, tribo e reino. Os anciãos e o conselho familiar, embora gozem de grande prestígio, não o suplantam em autoridade, a anão ser em situações extremas e flagrantes. A sua autoridade nunca pode chegar ao despotismo porque a família forma uma comunidade democrática. O conselho familiar, no qual actuam todos os maiores de idade, admite a sua autoridade suprema porque lhe reconhece a superioridade de estirpe, mas controla as suas decisões e opina em assuntos importantes.desta forma as decisões passam por uma consulta prévia à comunidade.
O chefe desempenha uma função fundamental no grupo. Como pessoa mais qualificada e vitalmente mais poderosa, é o guia necessário da comunidade e o guarda das suas tradições e da sua coesão. As motivações religiosas, como veremos, marcam o ritmo e caracterizam a sua mentalidade. Segundo esta concepção sacral, o chefe é um carismático. Constitui, com os notáveis e os anciãos, o grupo mais autorizado, o estrato social mais prestigiado e, como instituição presidida por um “enviado carismático”, que dirige, pensa, solidariza, vigia e procura o bem da comunidade. Quem vê o chefe contacta com a vida que arrancou do hipônimo, e contempla este e os outros antepassados. O chefe é o canal de conexão directa com a corrente vital ancestral. Por ele, a comunidade realiza a participação vital na fonte genuína. Por isso, a chefia pertence à linhagem que a comunidade reconhece como autenticidade de sangue e maior antiguidade. Só pode ser chefe quem prove, por sua ascendência, que descende, em linha directa, do fundador do grupo. Só assim se reúne as condições inatas que confirmam a sua predestinação para patriarca, sacerdote, juiz, protector e condutor da comunidade.
Em resumo, o chefe é o sangue e o espírito dos antepassados, prolongamento e deposito comunicante do dinamismo vital, pessoa sagrada, responsável pela comunidade perante os antepassados, seu delegado por capacidade e eleição e a sua encarnação, pois que, por intermédio dele, vivificam a comunidade a comunidade.


1.1.2 O clã e a tribo.

Um clã2 constitui-se num grupo de pessoas unidas por parentesco e linhagem e que é definido pela descendência de um ancestral comum. Mesmo
2. Clã é a forma em língua portuguesa da palavra gaélica clann, que significa "crianças". An Chlann Aoidh, o nome em gaélico escocês para o Clã Mackay, significa literalmente "As Crianças do Fogo" (sendo "fogo" uma tradução literal do nome gaélico Aodh –; caso genitivo e vocativo, hAoidh –; o qual pode ser traduzido foneticamente para o escocês e inglês como Eth, Y, Hy, Heth, Huey e Hugh).
Clannad é uma forma estendida da palavra clann, e que pode ser traduzida por "família".

 




se os reais padrões de consangüinidade forem desconhecidos, não obstante os membros do clã reconhecem um membro fundador ou ancestral maior. Como o parentesco baseado em laços pode ser de natureza meramente simbólica, alguns clãs compartilham um ancestral comum "estipulado", o qual é um símbolo da unidade do clã. Quando este ancestral não é humano, é referenciado como um totem animal. Em geral, o parentesco difere da relação biológica, visto que esta também envolve adoção, casamento e supostos laços genealógicos. Os clãs podem ser descritos mais facilmente como subgrupos de tribos e geralmente constituem grupos de 7000 a 10 000 pessoas. 
   Alguns clãs são patrilineares, significando que seus membros são vinculados à linhagem masculina; Outros são matrilineares quando seus membros são vinculados à linhagem feminina. Ainda existem clãs "bilaterais", consistindo de todos os descendentes do ancestral maior, tanto da linhagem masculina quanto feminina. Se um clã é patrilinear, matrilinear ou bilateral, depende das regras e normas de parentesco que regem a sociedade onde ele se insere.
O clã pode ser definido como um grupo aparentado por uma por uma consangüinidade mística. Nele se fundem as estruturas familiares e políticas. O clã supera os grupos de consangüinidade pela sua amplitude demográfica e importância e relevo sociais e políticos.
O clã desempenha uma função política, é a estrutura intermédia entre a família alargada e a tribo, reino ou império. Mas a idéia de clã está de tal maneira ligada à de parentela mítica que é preciso renunciar a esta aparente claridade verbal e ver no clã um tipo de organização polivalente que se torna necessário estudar ora como família alargada, ora como sistema político.
Como sistema político, o clã define uma solidariedade econômica e territorial, comunidade de culto, tribunal, direito e auxílios comuns, embora esta associação se expresse em termos de parentela mística ou de exogamia3.
Como sistema familiar (e ao mesmo político, sem deixar de ser) marca uma solidariedade econômica e territorial e uma união-comunidade fundamentada nessa parentela, onde se impõem leis em matéria política às famílias alargadas.
Segundo certos etnólogos, clã é a união de grupos totêmicos ou talismãnicos dentro de uma mesma tribo, em que cada clã possui uma denominação, símbolos, uma divisa e um brasão a que se dá o nome de totem; que pode ser um animal (o mais corrente) ou um vegetal.
Cada clã possui a sua designação específica: um nome que pode ser esotérico, honorífico ou que pode evocar a sua origem mítica com caracteres descritivos pormenorizados da sua história. O clã, é por isso, é um agrupamento de indivíduos e famílias que se consideram parente, não porque as genealogias conhecidas o demonstrem, mas porque têm como herança as mesmas insígnias, nomes, proibições, funções rituais ou cósmicas.
Ao que parece, a origem das tribos remonta aos tempos das migrações clãnicas. Vários clãs, ao radicarem-se numa determinada área, constituíam uma tribo.

3. Em biologia, a exogamia refere-se ao cruzamento de indivíduos pouco relacionados geneticamente. Isto beneficia a descendência, visto que esta tem menos hipóteses de herdar duas cópias de um gene defeituoso.culturalmente, exogamia é o casamento entre membros de grupos diferentes, ou seja, japonês com alemã, italiano com africana, americano com havaiana, caracterizando a exogamia.

 



A organização tribal nasceu a partir de afinidades étnicas e culturais, de interesses econômicos ou de alianças entre clãs afins. A prepotência de algum clã, sobretudo pelas suas qualidades de guerreiras, foi sem duvida um factor importante, impondo-se aos outros, assumindo a autoridade e formando a casta dirigente, onde nas suas migrações ou incursões guerreiras consegue conectar e aglutinar as restantes.
Os clãs, ao atingir uma amplitude, subdividem-se em subclãs. Vivendo todos no mesmo território, surge a necessidade de coesão e um novo sistema social e político, com uma autoridade comum superior às autoridades clãnicas que servia de referência e de encontro, sobretudo em momentos críticos.
Os clãs com a mesma cultura, língua e religião, ao tomarem consciência da sua unidade, e reconhecida pelos vizinhos, dão origem a solidariedade e ao surgimento de uma tribo.
Sem dúvida, a tribo é algo mais do que um grupo social e político. O parentesco comum parece ser algo de constitutivo. A sua união, coesão e sentido de identidade arrancam de um antepassado comum, muito longínquo e mais mítico do que do clã.
A tribo é sempre um sistema social que regula a integração dos componentes, dentro de uma variedade organizativa que pode ser apertada, formulada ou simplesmente mantida pela autoridade de um chefe que vela pelos costumes aceites como comum e sanciona os desvios.
Todos estes sistemas são meios pelos quais um povo, cuja filiação transcende as agrupações de parentesco e que se identifica a si mesmo com uma área que habita e domina, se capacita para regular o procedimento dos seus membros e dirige os seus assuntos quando tem de tratar com outros grupos autônomos.
Assim sendo, a tribo é uma “família”, na qual cada indivíduo e grupo mantêm relações bem definidas, constitui, sem dúvidas, uma verdadeira sociedade e não um aglomerado de indivíduos que, casualmente, vivem num determinado território.
A chefia tribal pertence ao clã aglutinador que se impõe; dentro desse clã seguem-se as normas hereditárias da chefia clãnica. A tribo pode ter como chefe um soberano, com caráter monárquico. Assim como tiveram os Cuanhamas e ainda o conservam os Jingas. A maioria, porém, rege-se pelo tipo de chefia mencionada, aconselhada e controlada pelos chefes clãnicos e familiares.
Em resumo, a tribo apresenta-se como um grupo social de idêntica cultura, língua e religião e com uma consciência viva de identidade e unidade moral. É a união de famílias e clãs. A sua unidade moral apela sempre para a posse comum e permanente de um território, quando é sedentária, ou de uma região geográfica determinada que percorre como nómada, em que os grupos limítrofes reconhecem estes direitos.


1.2 O casamento tradicional bantu.

O casamento bantu sistematiza e controla a vida social, visto que organiza as relações entre parentelas e vai fixando a filiação. Por ele, as linhagens têm direitos sobre as descendências e dilatam-se no tempo e no espaço, depois de ficar fixadas.
O matrimonio é um assunto complexo em que os aspectos econômicos, sociais e religiosos estão, por vezes, intrincicadamente misturados que não se podem separar. Para os bantu, o matrimonio é o centro da existência.é o lugar de encontro de todos os membros de uma comunidade: os defuntos, os vivos e os que ainda vão nascer.
O matrimonio é o drama em que cada um participa como actor ou como actriz e ano como mero espectador. Por isso, é um dever, uma experiência fixada pela comunidade e um ritmo de vida em que cada um deve tomar parte. Quem não participa é uma maldição para a comunidade, é um rebelde: não só anormal como chega a um nível inferior ao humano. Em geral, se um indivíduo não casa, significa que rejeitou a comunidade e que a comunidade o rejeita a ele.
O casamento bantu fundamenta uma relação entre grupos. O matrimonio bantu é uma aliança que legitima uma nova família enriquecedora e une linhagens sem a intervenção de autoridades políticas. Desta forma, os dois grupos, baseando-se na união, firmam um contrato, que não diz respeito somente a uma só pessoa – homem ou mulher – mas aos dois grupos a que pertencem e que ficam comprometidos. Assim, dois que se casam, fazem-no enquanto membros de duas famílias, de dois clãs e, deste facto, nasce a sua dimensão comunitária e social.
   A mulher ou homem, introduzidos pelos matrimônios no novo grupo, reforçam a amizade e as alianças entre famílias, clãs, tribos e reinos amigos, ou inauguram-nas se não são estranhos, diferentes ou hostis.
O bantu é consciente de que ao casar revigora a solidariedade comunitária.
Como facto social, a plena integração do homem e da mulher inicia nos ritos da puberdade, que condiciona o matrimonio. Ambos se realizam e adquirem o pleno estatuto social quando se tornam progenitores. O casamento bantu intenta, como fim primário, a continuidade ininterrupta da comunidade. Os filhos vitalizam o grupo, amparam os velhos, continuam o culto aos antepassados e asseguram a sobrevivência dos esposos.
O casamento bantu é também essencialmente fonte de vida, pois a sua estrutura sócio-religiosa exige a procriação, que ocupa o cume da hierarquia bantu. A aliança concretiza-se, se as linhagens se perpetuarem. Como referido, na sociedade bantu, impõem-se a finalidade e a vivência comunitária. Por este princípio, o fim primário do casamento é a procriação. O bantu casa prioritariamente para ter filhos. O bantu com filhos sente-se protagonista da história da sua comunidade e ele próprio se torna história. A sua existência fica justificada e a missão da sua vida, sacralizada. Só assim se realiza um dos mais elevados ideais.
O homem e a mulher só adquirem plenitude social e religiosa pela sua fecundidade, já que isso lhes autorga um novo estatuto e prova a sua maturidade pessoal e a benevolência dos antepassados. A fecundidade emancipa o homem e a mulher. A sociedade reconhece-o. Gerar novas vidas é a maior aspiração do bantu. Porque viver é criar e continuar a vida, o dom de Deus, que se recebe através de gerações de antepassados atentos a esse tesouro. Por esse motivo gerar filhos é a obrigação moral mais grave.



1.2.1 A exogamia (endogamia).

Exogamia é um processo ou norma positiva que regula as relações entre grupos de filiação.
Entre os bantu, a exogamia familiar e clãnica e a endogamia tribal são normas rígidas e rigorosas, embora em certas regiões se atenuam.
Este processo obriga pessoas que não são parentes, pertencentes em grupos separados, a contrair matrimónio. Neste caso, é de notar que a parentela mítica exige a exogamia e regula os matrimónios.
Vários foram os antropólogos, sociólogos e historiadores que deram o seu contributo na explicação deste processo.
Na opinião de H. Spencer, as mulheres apanhadas nas lutas dos grupos primitivos não eram só como escravas mais também como troféus. Esta particularidade dava-lhes um valor extrínseco em relação as mulheres do grupo.
Segundo J. Lubbock, sugere que os homens para se apoderarem de uma mulher, sem lesar os direitos do seu grupo, não tinham outro forma senão raptar mulheres em grupos estrangeiros.
Já E. Durkheim, o pai da sociologia da educação, atribui a sua origem no totemismo, isto é, ninguém pode se casar ou relacionar-se sexualmente com quem tem o mesmo totem, porque o sangue comum encerra perigos mágicos, sobretudo na menstruação.
A exogamia está limitada pelo tabu do incesto, isto é, o matrimónio apenas é proibido entre consanguíneos imediatos.
No clã onde o parentesco é místico e a genealogia vem marcada pela descendência comum de um nome, brasão ou totem, pesam tabus incesto sobre o matrimónio realizado entre os seus membros. Pode dar-se uma exogamia clãnica que aceite matrimónio entre parentes próximos, mas pertencentes a clãs diferentes, neste a inclusão no clã pode realizar-se por meio de pai ou da mãe, pelo sistema de linhagem.
Portento, a exogamia clãnica consolida a expansão, a comunicabilidade, a solidariedade e a conquista de novas relações sociais e alianças e pactos políticos.           


1.2.2 A poligamia.

Antes de começarmos a falar sobre a poligamia na comunidade ou sociedade bantu, gostaríamos em primeira instância tratar do conceito de poligamia.
Por poligamia4 se entende como sendo o regime familiar em que o homem tem varias esposas. Aparece com maior freqüência a poligamia sucessiva, quando um homem arranja uma nova esposa sem antes repudiar as antecessoras. A poligamia é, simultaneamente, quando um homem vive ao mesmo tempo com

4. Poligamia, do grego muitos matrimônios. No reino animal, a poligamia se refere à relação onde os animais mantêm mais de um vínculo sexual no período de reprodução. Nos humanos, a poligamia é um tipo de relacionamento amoroso e sexual entre mais de duas pessoas, por um período significativo de tempo ou por toda a vida. É permitida por algumas religiões e pela legislação de determinados países
 




varias esposas em regime familiar e as atende juntamente com os filhos; ou quando um homem vai unindo as sucessivas mulheres, isto é, uma substituindo a outra e, deixando de ter, com a antecessora, relação sexual e econômica.
Na comunidade bantu, a média do regime poligâmico reside no facto de se possuir duas ou três esposas. Mais os grandes chefes e raros potentados juntam entre dez e vinte cinco mulheres.
Alguns vêem na poligamia uma sobrevivência dum suposto “casamento por grupos”. A poligamia não tinha antes aceitabilidade entre os bantu, mas, mais através dos provérbios: «uma mulher não constrói uma aldeia», «um dedo só na consegue introduzir os grãos de milho cozido na boca», uma só flecha não é capaz de matar uma serpente», a poligamia passou a ter um certo prestigio.
A poligamia não é um fenômeno isolado, ou seja, individual, mas sim social e colectivo, pode ser considerado como uma expressão da personalidade cultural africana. Segundo esta concepção, as mulheres e os filhos autorgam prestigio ao homem, porque são os símbolos tangíveis deste poder de vida, que deve ser respeitado e continuado na vida do grupo familiar. A poligamia aumenta o número de relações sociais duma família e contribui para a sua integração na sociedade.
 A criação de múltiplas alianças matrimoniais, através da poligamia, e pela prole numerosa, colabora no enriquecimento comunitário. Neste contexto se deve apreciar o fenômeno da poligamia como a imagem e fertilidade da vida, de continuidade da linhagem, de realização do grupo, também de riqueza, de autoridade, de encarnação dum conjunto de costumes de regras de vida...
Assim, o polígamo, na sociedade tradicional bantu, concretiza a “figura do ideal humano”. Encarna na sua pessoa as tendências do grupo. Concretiza na sua pessoa, a comunidade, o equilíbrio, a comunicação da vida, os laços com os outros grupos, a riqueza, a defesa dos bens, a autoridade religiosa e física. O polígamo é aos olhos dos outros, a imagem do dom de si mesmo à comunidade. A poligamia prestigia o homem porque aumenta o seu prestígio social. Os filhos numerosos outorgam autoridade, influencia, respeito, admiração, inveja e veneração patriarcal; factos e motivos que fazem dos chefes bantu serem obrigatoriamente polígamo. Pois que, para se consolidar, assegurar, potenciar e vitalizar o poder, o chefe deve gerar muitos filhos.


1.2.3 Classes e castas.

Na sociedade tradicional bantu não existe a noção de classe derivada do factor económico. Não existiu nem mesmo o contrato de trabalho ou a propriedade privada dos meios de produção; existiu sim a noção de castas, mas a partir de critérios políticos, religiosos, mágicos e filosóficos, isto é, da noção de prestígios. As castas são definidas, isto é, são grupos sociais nos quais se entra por nascimento e se justificam pela tradição e por princípios culturais e religiosos.
A organização bantu em castas é muito peculiar. Nunca supõe barreiras definitivas e insuperáveis, visto que a protagonista da vida é a comunidade. Isto dá um carácter extremamente humano a estas sociedades. Embora se verifiquem algumas diferenças ocasionadas pelas castas, estas não se parecem tão extremistas como na Índia, pois a sociedade bantu é aberta.
Existem entre os bantu alguns estratos sociais institucionalizados; a função politica era prerrogativa de um estrato com grande influencia, por ser herdeiro do clã mais forte, e assim consegue impor-se aos demais.
Nos grupos bantu reduzidos e mais primitivos, os únicos estratos sociais formam-se a partir da idade e do sexo. Quando a sociedade cresce, a família herdade ira do fundador ou do conquistador assegura a chefia ocupando o mais alto grau da escala social.
Quando estes grupos atingem um maior desenvolvimento, através do contacto pacífico ou guerreiro com outros povos, surgem novas formas de estratificação social. As desigual idades sociais, além das originadas pela idade, sexo, consanguinidade e chefia, partem de iniciativas particulares que a comunidade aceita como proveitosas e de acções que consagram um valor pessoal em consonância com as exigências e necessidade comunitárias.
Surge assim a aristocracia dos guerreiros e dos caçadores que formam um estrato diferenciado, privilegiado e especializado. Nas suas linhagens acumulam-se lendas e ritos de um estilo e mentalidade que lhe são próprios.
Guerreiros famosos e alguns caçadores deram origem, com os seus feitos, a uma genealogia aristocrática prestigiada. Outro grupo que também merecem atenção é os artesãos; os especialistas de magia (curandeiros e adivinhos) que são considerados seres diferenciados e sacralizados. Quanto aos escravos e seus descendentes, estes formam a casta mais baixa.
Os chefes, os cabeças de linhagens, os velhos e notáveis, herdeiros de homens prestigiosos, formam a casta mais categorizada. Apoiam-se no prestígio e autoridade dos seus ascendentes que se impuseram a outros clãs ou deram origem à corrente vital comunitária como epónimo. Esta aristocracia estende-se a todos os consanguíneos e ocupa as chefias hereditárias.
Como pensadores, fazem convergir todos esses elementos para o bem comum. Conhecem a ética e são hábeis no manejo do direito ancestral, como sedimento de séculos de experiência comunitária. Dispõem de um sistema de direito coercivo eficaz, algumas vezes com ameaças e sanções magicas. Pois o castigo é impregnado de interferências do mundo invisível ou de inteiração vital.
Esta casta faz girar na sua órbita os personagens mais influentes como agricultores experientes, artistas e especialistas da magia. Esta combinação de aristocratas, tecnocratas e hierarquias religiosas torna-se compacta e, por vezes, impenetrável. Assim, a casta possui os conhecimentos intelectuais tradicionais e técnicos e domina os poderes mágicos. Conhece a história do grupo, os seus ritos e costumes. Interpreta-os e cria jurisprudência. Vigia, define e interpreta a tradição, defende a ética e promove o culto.
Portanto, quem não penetra nas profundas da sociedade bantu, não pode perceber-se de que no seu seio existem estratos sociais; pois eles não se distinguem pelo modo de vida, vestuário ou riqueza, mas sim pela ascendência.
Assim, pode se resumir que os estratos sociais, as castas, da sociedade bantu, nobreza ou aristocracia, formada pelos chefes, guerreiros ou caçadores destemidos e, os que de algum modo manejam o poder mágico, constituem uma casta sempre temida e respeitada; os especialistas em algum ofício ou arte gozam de especiais privilégios e considerações; os chefes de linhagem, os anciãos e ministros conselheiros constituem a classe média; os escravos e seus descendentes constituem a mais baixa casta e o povo, a grande massa dos homens livres, dos cidadãos por direito de nascimento, consanguinidade idêntica corrente vital, constituem os que não possuem qualquer qualificação.
Mas, convêm ressaltar que estas distinções não e nunca constituem barreiras definitivas ou insuperáveis, visto que a comunidade é protagonista da vida bantu. Os diferentes estratos sempre se subdividiram e misturaram ao ponto de se concluir que não estão baseados em nada mais do que num sistema convencional de sucessão hereditária.


1.2.4 Divisão do trabalho por sexo.

A sociedade bantu observa com rigor as tradições que impõe as divisões das ocupações e trabalho por sexo. A aglutinação econômica e produtiva dos dois sexos dá resultados positivos para a família e para a comunidade. Esta divisão se encontrava nas sociedades de economia mais rudimentar, e é universal no tempo e no espaço. Pois os factores económicos e as experiências da vida, em estados culturais primários, determinaram esta separação.
Assim, o homem, por ser o mais forte, foi sempre o caçador, o guerreiro e o desbrava dor do terreno, quando se fixam num lugar e, também a pastorícia exigia liberdade e resistência masculina.
Diante desta mobilidade masculina, a mulher encontrou sempre um campo mais restrito de actividade por causa das frequentes gestações e do cuidado dos filhos. Tinha de permanecer em casa e ocupar-se dos trabalhos condizentes com a situação e complementares dos trabalhos do homem que sempre precisou de um lar para repousar. Portanto, não nos esquecendo, é de dizer que a divisão de trabalho é anterior a agricultura e domesticação de animais, vantagem importante, porém conseguida quando começou a agricultura.
Desta feita, para os bantu, a mulher é a agricultora, mãe, esposa e dona de casa. O homem é livre para caçar e sair de casa, uma vez que os trabalhos que exigem força física e coragem pertencem a ele.
A separaçao de trabalhos condiciona, naturalmente, o matrimónio que constitui uma associação económica recíproca à qual cada um aporta o especificada sua condição sexual e, o que é mais importante, na qual os dois necessitam um do outro, não só para a procriação que poderia realizar-se sem matrimónio, mas para reunir as condições imprescindíveis de convivência.
O caçador, o guerreiro e o pastor precisam de uma esposa, dona de casa e agricultora que proporcione um lar acolhedor e que cuide dos filhos, a sua maior realização, ao mesmo tempo em que complementa a economia e alimentação. Por seu lado, mulher precisa de um homem de confiança que defende o lar e complete a alimentação dos filhos.
Esta separação vista do ponto de vista sociológico, exigi o matrimónio estável como associação económica sólida e eficiente, contraria, por evidência, à pretendida promiscuidade e à suposta anarquia de sexos. 




1.3       Religião tradicional bantu.

Designar o sistema de crenças bantu com um único vocábulo supõe uma simplificação inexacta. Por isso, surgem confusões e deturpações que impedem a sua interpretação, uma vez que se encontram misturadas variadas manifestações que impossibilitam uma designação unívoca que explicite tanto o conteúdo como a forma em que se manifesta o sentimento religioso bantu. A religião tradicional bantu, contem elementos mais ou menos notórios como o feiticismo, o animismo, o naturalismo, o Ancestralismo, o animantismo e o totemismo.

Feiticismo: vem designar-se por feitiço o conjunto de crenças, cultos e ritos dos negros de África que tem por objecto a adoração de objectos materiais, os feitiços ou “gris-gris”. Feiticismo deriva do vocábulo português “feitiço”, que por sua vez vem das palavras latinas “fatum, fari”, ou de “factitius”, isto é, objectos feitos à mão, coisas feitas, artificiais, com significado e encanto mágicos e que, alem disso, são objectos de culto.
A palavra feiticismo apareceu, pela primeira vez, com o termo científico e descritivo, em 1960 e num livro de Charles de Brosses, intitulado: “do culto aos deuses, feitiços ou paralelo da antiga religião do Egipto com a religião actual da Nigéria”. Segundo Brosses, “a teologia pagã ocupava-se do culto aos astros, um sabeismo, ou do culto não menos antigo de certos objectos terrestres e materiais chamados feitiços, entre negros africanos, entre os quais subsiste este culto e que, por tal razão, [chamou] de feiticismo... e seu significado próprio refere-se em particular aos negros africanos”5.
O feiticismo traz consigo um significado pejorativo com conotações de baixa moralidade e índice mental inferior, alem de se apresentar confuso em sua definição e conteúdo.

Animismo: O termo Animismo foi cunhado pelo antropólogo inglês Sir Edward B. Tylor, em 1871, na obra Primitive Culture (A Cultura Primitiva). Pelo termo Animismo, Tylor designou a manifestação religiosa imanente a todos os elementos do cosmos (Sol, Lua, estrelas), a todos os elementos da natureza (rio, oceano, montanha, floresta, rocha), a todos os seres vivos (animais, árvores, plantas) e a todos os fenómenos naturais (chuva, vento, dia, noite); é um princípio vital e pessoal, chamado de "ânima", o qual apresenta significados variados:
·        Cosmocêntrica significa energia;
·        Antropocêntrica significa espírito;
·        Teocêntrica significa alma.

Consequentemente, todos esses elementos são passíveis de possuírem: sentimentos, emoções, vontades ou desejos, e até mesmo inteligência. Resumidamente, os cultos animistas alegam que: "Todas as coisas são Vivas", "Todas as coisas são Conscientes", ou "Todas as coisas têm ânima".



5. In ALTUNA, R. R. A.: Cultura tradicional bantu. Paulinas Editora, Portugal, 2006, p. 356b.
 
O Animismo possui três simples regras:
·      Tudo no cosmo tem "ânima";
·      Todo o "ânima" é transferível;
·      Tudo ou todo que transfere "ânima" não perde a totalidade de seu "ânima", mas quem ou que recebe perde parte ou a totalidade de seu "ânima", o qual será tomado pelo "ânima" doador.

A partir da década de 50, o termo deixa de ser utilizado pela Antropologia por ser considerado muito genérico, uma vez que se aceita que elementos animistas estão presentes em quase todas as religiões.
Actualmente discutem-se quais foram historicamente os primeiros cultos que deram origem a todas as religiões e a todos os deuses. Alguns historiadores e cientistas defendem a tese de que foram os mitos politeístas, enquanto outros afirmam que foram os cultos animistas.
Na literatura espírita, o termo Animismo é usado para designar um tipo de fenómeno onde é o Espírito encarnado do próprio médium que se manifesta por ele.
Para melhor entendimento desse fenómeno, convém usarmos as denominações utilizadas pelo estudioso espírita Hermínio Miranda, quais sejam, a de chamarmos o Espírito, que, segundo o Espiritismo, tem uma infinidade de existências, de individualidade, chamando cada uma das existências do mesmo de uma de suas personalidades.
Admitida a pluralidade das existências, resta evidente que a individualidade deve possuir um conhecimento imensamente superior ao de cada uma de suas personalidades, pois soma ao conhecimento da actual personalidade tudo o que aproveitou das que representou nas existências progressas.
Desse modo, na manifestação anímica, o médium pode expressar muitos conhecimentos que ele, enquanto personalidade, não possui. Daí decorre, muitas vezes, que não há como se saber se uma manifestação é anímica ou realmente mediúnica, ocorrendo esta última tão-somente quando o Espírito que se comunica não é o que está encarnado no médium.
É bom saber que não existe uma dicotomia (dualidade) entre fenómeno anímico e fenómeno mediúnico. Na grande maioria das vezes o que ocorre é um estado intermediário com maior ou menor participação do Espírito encarnado no médium em relação ao Espírito desencarnado que por ele se expressa.

Naturalismo: é uma teoria metafísica que defende que todos os fenómenos podem ser explicados mecanicamente em termos de causas e leis naturais. O naturalismo opõe-se ao sobrenaturalismo, teoria metafísica teológica. O sobrenaturalismo atribui não apenas uma origem sobrenatural ao universo mas defende que este tem uma moral própria e um propósito espiritual. O naturalismo vê o universo como uma máquina ou organismo, desprovido de propósito geral, apesar de partes do universo funcionarem harmoniosamente e parecerem ter sido desenhados para essa função. Os sobre naturalistas vêem o universo como tendo sido criado para uma finalidade, e geralmente acreditam que nada acontece sem um propósito moral ou divino. Para os naturalistas, a Natureza é indiferente às necessidades e desejos humanos. Para os sobre naturalistas, Deus encheu o mundo natural com tudo o que precisamos e devemos desejar, bem como com o que não precisamos e não devemos desejar. Estes também têm um propósito: são desafios morais e lembranças do nosso lugar no grande esquema das coisas.
Como afirmado acima, o naturalismo é uma teoria metafísica. As teorias metafísicas tratam da natureza da realidade. São geralmente divididas em ontologia, cosmologia e teologia. Ontologia é a metafísica do ser.

Totemísmo: (etimologicamente = tribo-clã) crê-se que há um parentesco entre o clã e uma espécie animal ou vegetal. Julga-se, por exemplo, da união de um urso com uma mulher. Então, o nome de seu totem vai ser urso. Este torna-se um animal sagrado. Não se pode matá-lo, a não ser em condições especiais, em que se come a sua carne e se bebe o seu sangue para aurir a força, a inteligência, ou a agilidade desse animal, do totem. Há ritos de agregação ao totem.
Totem é qualquer objeto, animal ou planta que seja cultuado como Deus ou equivalente por uma sociedade organizada em torno de um símbolo ou por uma religião, a qual é denominada totemismo. Por definição religiosa podemos afirmar que é uma etiqueta colectiva tribal, que tem um carácter religioso. É em relação a ele que as coisas são classificadas em sagradas ou profanas. Segundo Schoolcraft, analisando os termos dos totens tribais da América do Norte, "o totem, diz ele, é na verdade um desenho que corresponde aos emblemas heráldicos das nações civilizadas e que cada pessoa é autorizada a portar como prova da identidade da família à qual pertence. É o que demonstra a etimologia verdadeira da palavra, derivada de 'dodaim', que significa aldeia ou residência de um grupo familiar".
O totemismo nas tribos bantu transparece nas designações dos clãs que tinham nome de animais. Nas figuras rupestres que representavam figuras que se apresentavam meio-animal, meio-homem, nos mitos sobre animais, que, nos tempos imemoriais, eram semelhantes aos homens e vice-versa, sobre animais transformados em homens.
O traço mais característico do totemismo é o culto profissional. Dirigem-se preces aos fenómenos da natureza, pedindo sorte nos seus afazeres.

Ancestralismo ou Manismo: culto às almas de defuntos, como oferecimentos de sacrifícios. Fala-se também em Euhemerismo (Euhemero, filósofo grego: os deuses nada mais são do que homens divinizados).
Quando, numa comunidade, nos referimos aos antepassados, estamos a referir-nos ao fundador da linhagem ou do grupo étnico e a todos os integrantes desse grupo que deixaram o mundo dos vivos, passando a integrar o mundo espiritual dos antepassados. O óbito inclui ritos que “regulamentam o luto e asseguram o estatuto do defunto que, uma vez integrado no mundo dos antepassados, participa na continuidade do grupo”6. Pode se acrescentar que “o rito fúnebre é … também a ocasião para uma nova redistribuição das riquezas, através do jogo de dons e contra-dons, e de compensações mortuárias”7.
O culto aos antepassados consiste na invocação aos antepassados (invocação dos espíritos daqueles que já morreram), seja para protegê-los e os

6. Gonçalves, 2001: 13
7. Gonçalves, 2001: 15
 
beneficiar a eles próprios, seja para proteger e beneficiar os vivos, a comunidade, a linhagem ou o grupo étnico. O culto aos antepassados tem por princípio a convicção de que a morte terrena não implica o desaparecimento do espírito – antes pelo contrário, a morte terrena significa somente a transição para um estágio de vida diferente, com a separação entre o corpo físico (que morre, se decompõe e desaparece) e o espírito, que se mantém vivo, numa dimensão hierarquicamente superior à da vida terrena.
O culto aos antepassados está presente nas comunidades humanas desde há muito tempo. Há, inclusivamente, religiões que o promovem, como é o caso da religião católica, que apregoa a necessidade de celebração de missas pelos mortos (mais precisamente, pelos espíritos daqueles que já desapareceram fisicamente), seja em benefício da sua alma, seja em favor e protecção dos vivos8.
O culto e a invocação aos antepassados fazem-se através daquilo que vulgarmente se designa por feitiçaria ou feitiço, mas que vamos aqui designar (na esteira de Chicoadão [2005]) por wanga. De acordo com Marc Augé9, a wanga consiste num “conjunto de crenças estruturadas e partilhadas por uma dada população que se liga à origem do mal, da doença ou da morte, e o conjunto das práticas de detecção, de terapia e de sanções que correspondem a essas crenças”. Mas é preciso acrescentar que a wanga é um processo através do qual se realizam ritos e manifestações espirituais, se invocam deuses e se dialoga com espíritos dos antepassados, com dois objectivos fundamentais: o culto do mal (para provocar doenças ou morte terrena) ou o culto do bem (para cura e para prevenção do mal)10. Para o primeiro caso são usados os mikixi, enquanto para o segundo se utilizam os jingombo. Tanto num caso, quanto no outro, há diálogo com os deuses e com os espíritos dos antepassados, havendo posteriormente recurso à flora e à fauna, em cumprimento das orientações recebidas e dos rituais indispensáveis à pretensão. De acordo com Adam Kuper11, a função da wanga é “ritualizar o optimismo do homem e fortalecer a sua fé na vitória da esperança sobre o medo”.
Em relação aos povos de Angola, existe tradição ancestral de culto aos antepassados, através de ritos e manifestações espirituais que são feitos por entidades com poder para tal12. A sua importância é tal, que sem esse tipo de culto não seria concebível a perpetuação do grupo ao longo dos séculos. Para os povos de Angola, não é concebível a vida sem recurso ao apoio e orientação dos antepassados.
Depois das explicações relacionadas com a wanga e o culto aos antepassados, vamos de seguida referir-nos à kyanda e à mulemba, como dois símbolos (uma imagem e um local) sagrados, reconhecidos até hoje na região de Luanda.

Com todos elementos da religião tradicional bantu acima conceituados e brevemente desenvolvidos podemos dizer que o bantu é essencialmente religioso, pois só pode realizar a sua existência em perfeita comunhão com o sagrado. Para o bantu a religião é cultura e cultura é religião, a religião
8. cf. Martinez, 2007
9. apud Carvalho, 1989: 281
10. Chicoadão, 2005: 24-26
11. apud Crema, s.d.: 2
12. cf. Chicoadão, 2005: 33-35
 



tradicional bantu é o elemento central da cultura bantu e, mais do que isso, ela é considerada a mãe, a criadora de civilização. A religião tradicional dá forma, condições e vivifica as instituições e manifestações familiares, sociais e politicas.

1.3.1 Os santuários.

As mais antigas formas de organização social deve-se, por probabilidade, a ligação com os santuários. Os cultos dos santuários estavam mais relacionados com extensões territoriais do que com as linhagens de possessão e associados à curas médicas ou psíquicas. Estes cultos tinham responsabilidades de provocar as chuvas, controlar as cheias, propiciar sucessos ao caçador e fertilidade aos solos do agricultor. Cada culto era responsável pelo bem-estar de todos habitantes da sua área de influência, ultrapassando as fronteiras entre grupos sociais, o culto era dirigido por uma elite de sacerdotes e oficiantes.
As populações primitivas, de um modo geral, sustentavam que o mundo era dirigido por uma divindade superior, representado na terra por uma serpente e cujo nome variava de região para região. Esta serpente vivia no cimo das montanhas e colinas e viajava com o vento.
Os Quimbundos de Luanda conhecem os “quituta” que vivem nos rios, bosques, rochas, fontes. Podem aparecer em forma de cobra com chifres ou de monstro horrível e encarnar através do pai ou da mãe. Também acreditam nas “quiandas”, sereias que aparecem na forma de pessoa, costumam ocasionar deformações físicas.
Os génios fixam o seu habitat em lugares e árvores especiais. Para vários angolanos, alguns embondeiros gigantes, os baobás, ficam sacralizados com a presença de génios bons e protectores, e constroem ao pé deles pequenas cubatas-santuários onde lhes oferecem culto. Era frequente pendurar os cadáveres dos feiticeiros dos seus ramos, para que os génios impedissem as suas acções nefastas. Controlam muitos lugares da natureza, quando habitam neles, bem como as actividades humanas nesse meio.
Há génios no ar, na chuva, na tormenta, no fundo da terra, nas selvas, lagos, rios, nas nascentes, na caça e pesca, nas culturas, viagens, estepes e até nas enfermidades misteriosas.
As pessoas originárias de Luanda acreditam na existência de seres dotados de poderes sobrenaturais. Trata-se das yanda (no singular, kyanda – sereia, como já referido acima), que são espíritos da natureza criados por Deus e estão ligados aos meios aquáticos (rios, lagos, lagoas e mar), aos quais estão associados mitos e cultos. As yanda são “seres bondosos” que se encontram também em terra, nas florestas ou nas montanhas, sendo o embondeiro a sua árvore de eleição13.
Uma kyanda é um génio da natureza, que está omnipresente porque traduz a ligação do ser humano ao meio em que vive. Não têm forma própria nem sequer forma constante. Não é fácil isso acontecer, mas pode ver-se uma kyanda. Nesse caso, “o que se vê, normalmente, não são mais que sinais delas [das yanda], luzes, lençóis de luz debaixo das águas, fitas, fitas de muitas cores”14. Virgílio Coelho adianta que “tanto no mar, como nos rios,
13. Carvalho, 1989: 285, Coelho 1997a: 147-149
14. Carvalho, 1989: 284-285
 
nas lagoas, nas cacimbas ou nas nascentes, as marcas da presença destes seres apresentam-se com o «aspecto humano», de cor branca, alva ou cristalina, completamente envoltos em «longos cabelos» também brancos, que conjuntamente com as cintilações de luz e os milhares de pontos luminosos, acrescidos de sons vibrantes e envolventes, conduzidos por ventos ruidosos e remoinhos, caracterizam o universo da sua presença”.
As yanda nutrem especial atenção pelas crianças, sendo atribuído a elas o nascimento de gémeos ou ainda a presença de sinais15, que lhes outorgarão poderes espirituais16. No caso de nos nascer um filho associado à kyanda, há necessidade de recurso ao adivinho para saber qual o seu local e a que kyanda se deve prestar tributo. Ruy Duarte de Carvalho17 descreve o que é preciso fazer, neste caso: “é o kimbanda quem vai adivinhar qual é o sítio dele, a lagoa, a cacimba onde tens de fazer o tratamento. E é aí que vais fazer a mesa. Uma toalha branca, copos novos, pratos novos, tudo novo, bebidas finas, vinho do Porto, agora whisky, cerveja se quiser; gasosa também, que eles têm miúdos, … passas de uva, gengibre,  cola, o que você encontrar que é bom e fino; cigarros e fósforos também; tudo aquilo que é difícil de encontrar e mais caro é o que eles gostam mais. E deixa ficar [no local indicado]. Eles vêm buscar.” É assim que se faz o tratamento. Depois disso, a kyanda passa a ser “tua amiga”, passa a ajudar, a proteger e a encaminhar.
O culto da kyanda marinha é praticado em alturas precisas ou sempre que haja falta de peixe. Mas trata-se de um culto privado, no sentido em que tem a participação ou a presença, apenas, de pessoas da comunidade. O culto é designado por kakulu e acredita-se que dele resulte prosperidade, que se traduz através da boa pesca.
Dentre os locais onde se faz actualmente o culto às yanda, podem citar-se a Ilha do Cabo (mais concretamente, a ponta da Ilha), as cercanias da sede do município de Cacuaco, a ilha do Mussulo e Kalumbu (conhecido como o lugar do Nga Mbangala, no município de Viana). Quanto a antigos locais de culto, podem enumerar-se as cercanias da Fortaleza de S. Miguel e a lagoa do bairro Indígena, cuja kyanda “levava anualmente, sem falta, uma ou duas crianças que desapareciam no seu seio, umas vezes por longo tempo, reaparecendo algumas vezes o corpo do falecido, após a baixa das águas; outras vezes, desaparecendo definitivamente na sua zona mais densa”18. Segundo Virgílio Coelho, quando alguém é levado por uma kyanda, transforma-se em seu filho e passa a “viver” com ela.
Quanto a mulemba (mulembeira) e o embondeiro (ou imbondeiro) estão ligados ao poder político, ao poder espiritual e à vida social dos grupos populacionais que habitam o espaço territorial angolano. Nesta breve referência ao embondeiro, vamos dizer que, em Luanda, ele está normalmente associado aos gémeos e à kyanda, mas serve também como instrumento de acção espiritual – por exemplo, para colocação de pregos ou outros objectos cortantes, com “pedidos de justiça e de vingança”.



15. Uma mancha ou uma marca com que a criança nasça é associada à kyanda. Também os
gémeos são considerados yanda [cf. Coelho 1987 e 1997a: 149-150, Carvalho 1989: 286-287].
16. Dutra, 2007: 135
17. Carvalho, 1989: 286
18. Coelho, 1997a: 158

 



No que diz respeito à mulemba19, o seu poder e a sua utilidade são tais que, antigamente, os chefes povoadores dos ndongo se faziam sempre acompanhar de uma estaca de mulemba do local de origem, para plantarem no centro do local de destino20. Para além de ser considerada “árvore do poder”, a mulemba é a “árvore do casamento”, a “árvore das alianças” e a “árvore da vida”, visto que “assegura a estabilidade da família e o seu alargamento através de alianças matrimoniais”21. Segundo nos diz Custódio Gonçalves 22, a mulemba é “expressão da descendência matrilinear, símbolo da origem mítica [dos ndongo] e da continuidade vertical do parentesco natural e da solidariedade de linhagem”.
A localização da mulemba, no centro da aldeia, é demonstrativa de tudo quanto ela representa ou simboliza, que podemos aqui resumir no seguinte: estabilidade, protecção e segurança, poder, sobrevivência, cura e sacralidade. Convém destacar que a designação “mulemba” encerra em si o termo lemba, que (entre os ndongo) está associado a:
• Família, relações de parentesco e alianças familiares;
• Tio mais velho, que é o representante das antigas linhagens e,
Simultaneamente, o “senhor da união” matrimonial;
• Antepassado feminino do lado materno, que favorece a fertilidade e a
procriação e “prende os descendentes uterinos a um mesmo antepassado remoto”.
 Além disso, a palavra mulemba está associada ao verbo kulemba, que significa “ser aceite como noiva(o)” e “oferecer uma prenda de casamento”.
Pelo que acaba de ser dito, resulta que, entre os ndongo, a manutenção e a prosperidade da família e da comunidade estão ligadas à mulemba. Seja a fertilidade (com o que sempre esteve associada a prosperidade da família), seja a protecção familiar, seja a união de famílias, seja ainda a bonança, estão entre os ndongo associadas à mulemba. Da mesma forma, a prosperidade da comunidade está associada à mulemba.
A mulemba está também ligada à fertilidade do solo e, portanto, ao “espírito da terra”24. Mas a mulemba é ainda a “árvore do chefe”, pois (como já foi dito) representa o poder político e o poder social, bem como as respectivas instituições. Pode, mesmo, dizer-se que a mulemba é considerada fonte de poder político e fonte de autoridade entre os ndongo.
Vejamos, a terminar este item, o lado espiritual daquilo que a mulemba representa. Trata-se de uma “árvore sagrada” que permite estabelecer a ligação entre os seres humanos e o mundo dos espíritos, “por analogia à sua própria constituição, com a raiz bem implantada no solo e a copa abrindo-se larga para o céu, desempenhando inúmeras funções nas esferas da religião, do
19. Mulemba ou incendeira é a ficus psilopoga, ficus welwitchii ou ficus thonningii, que possui tronco forte e copa larga e frondosa, e é apreciada pela sua sombra nos meses quentes e pelo abrigo nos meses frios. A árvore cresce rapidamente, a partir de estacas. As folhas e ramos são consumidos por antílopes e elefantes, enquanto o fruto (figo) é consumido por seres humanos, aves e morcegos. As fibras da madeira são utilizadas para construção de esteiras e cordas. O látex leitoso, bem como infusões e decocções da casca, raízes e fibras são utilizados com fins terapêuticos e medicinais [cf. Núcleo s.d.].
20. Se daí resultasse nova árvore, era sinal de que a nova aldeia podia ser criada [Gonçalves, 1984: 678], ou seja, havia aprovação dos antepassados para execução do novo projecto de expansão e fixação naquele local [Gonçalves, 1980: 95, Aço, 1992: 38-39; cf. Altuna, 1993: 238].
21. Coelho, 1987: 293-294.
22. 1984: 678.
23. Coelho, 1987: 293-295.
24. cf. Gonçalves, 2001: 14.



 









poder e da família”. A sua sacralidade está relacionada com a ligação aos antepassados, que auxiliam os habitantes da comunidade no dia-a-dia e garantem o bem-estar, a prosperidade e a estabilidade social.
A vibração da folhagem anuncia a presença dos espíritos dos antepassados, que habitam a árvore. Tendo em conta a presença dos espíritos dos antepassados, a mulemba é alvo de cuidado, atenção e respeito por parte de todos os integrantes da comunidade.
A ligação da mulemba aos antepassados está ainda relacionada com a adivinhação e a cura de enfermidades e outros males de que as pessoas da comunidade padeçam. Neste caso, o recurso aos antepassados, para adivinhação e solução, tem em vista a superação dos males que aflijam todos quantos pertençam à comunidade que habita à volta da mulemba.


1.3.2 Sociedades secretas.

As sociedades secretas possuem uma velha tradição negro-africana, em geral, e bantu, em particular. Encontram-se em quase todos os grupos, com formas e fins diversos. São características dos povos bantu.
São chamadas “secretas” porque, o seu carácter, ritos e a própria existência são desconhecidas, mas é difícil ignorar a sua actividade como crimes misteriosos, desaparecimentos e delitos inexplicáveis levam o selo mais ou solapado de algumas destas sociedades.
Embora tenham existido desde que a sociedade bantu se foi estruturando com formas sociais e politicas mais ou menos definidas, mas o impacto com o colonialismo ocasionou uma decomposição que as fez evoluir para novas formas.
Muitas afastaram-se da sua finalidade magico-religiosa, eficaz terapêutica social, para se transformarem em instrumentos de reacção. Degeneraram em grupos de violência, para efeitos de vinganças pessoais ou colectivas e semear o terror. Partindo da clandestinidade e da prepotência do intruso e da ruptura com a tradição que este exigia.
 Nessas sociedades, desorientada por uma força desculturada, bastava o terror de um antepassado, o capricho de um chefe, a maldade de um adivinho, a sede de vingança ou a necessidade de criar o terror entre a população, como salvaguarda da tradição, ou os sombrios interesses de um grupo para dar origem a uma sociedade secreta especializada.
Envoltas numa areóla de ministros, suscitavam sentimentos de curiosidade, respeito e medo. Dentro dos grupos comunitários, elas eram grupos com maior poder e coesão.
Muitas destas sociedades servem de travão a uma tirania ocasional de um chefe ou uma oligarquia; reagrupam o clã, delimitam a influência feminina, imunizam o organismo social contra vírus nocivos e, inclusivamente, expulsam os corpos estranhos. Os membros destas sociedades são Senhores do poder judicial e executivo, cumprem, a partir da clandestinidade, as suas sentenças implacáveis.
As suas reuniões são realizadas em lugares solitários, na espessura da noite e longe das aldeias e, se algum estranho os descobre é eliminado e mudam de lugar para evitar que o espírito do assassinado vá anunciar ao chefe o lugar das conspirações. Ninguém as denuncia, caso alguém mais saiba, com medo de represálias. As mesmas estão abertas apenas a indivíduos com qualidades específicas, quase sempre das castas altas. São eles que escolhem os candidatos ao ingresso e aquele que não aceita são eliminados.
Disfarçam-se e mascaram-se, com fins lúdicos, mas para intimidar. Eles tornam-se misteriosos e temidos pelas mulheres, crianças e pelos não iniciados.   
Como para o bantu não existe separação entre o profano e o religioso, tudo deve adquirir um fundamento religioso e mágico. Os membros destas sociedades são conscientes de formar uma sociedade mágica. Alguns têm como finalidade defender a religião tradicional e entregam-se à revolução do culto dos antepassados, à revitalização da tradição religiosa e a restauração dos ritos sacrificiais.
Todas as sociedades secretas masculinas excluem as mulheres que também formavam outras para compensar o domínio masculino. Depois da iniciação, elas mudam de nome pelo de um homem.
Como dito antes, com o aumento das populações, a desclanização galopante, a acção dos missionários e sobretudo, a centralização do poder, foram debilitando as suas funções, prestígios e poder. A desagregação tribal dificulta o sigilo e a vida económica minimiza as suas vantagens.


1.3.3 O preço do sangue.

A lei da vingança é uma das maiores expressões de solidariedade. É inevitável aplicá-la quando um membro do grupo é assassinado. O assassinato de um membro sinonimiza ofensa ao grupo, como tal, qualquer membro pode vingar o sangue de seu parente matando qualquer elemento do grupo em que o ofensor pertence, visto que os seus membros são co-responsáveis. Todos são responsáveis por cada um e um por todos.
A vingança é uma obrigação sagrada, porque o crime é um atentado ao valor estrutural mistico-comunitario, a vida. No interior do grupo também é aplicada.
As vezes a morte é causada por um agente externo (um antepassado indignado ou um espírito de má índole) e é necessário descobri-lo. Assim, devem ser aplicados pela comunidade com uma oferenda ou um sacrifício.
Só a morte satisfaz a justiça e aplaca o espírito do defunto que não mais perturbará a sua família que satisfaz os deveres de reparação. Em certas regiões como indemnização pela perda de vidas, usou-se a moeda humana, espécie de preço de sangue e, que as vezes se identifica com a escravatura.
Estas praticas testemunhas a valorização da pessoa humana porque se fundamentam no conceito de que a perda de um indivíduo só se paga com outro indivíduo, isto é, não há dinheiro que pague o valor de uma humana. Uma lei que remonta os períodos cristã, como reza a Bíblia em Êxodo 21:22-25.

  

Conclusão

À guisa de conclusão, vamos começar por recordar que entre os bantu a primeira célula social é a família, seja ela elementar, conjugal, nuclear ou reduzida que compreende pai, mãe e filho. Mas a família alargada é entre e para os bantu a verdadeira família. Ao conjunto de diversas famílias alargadas se formam uma densa rede totalizante que, à base de comunidades e solidariedades, estrutura a sociedade que se compraz em ser essencialmente comunitária. Assim, os membros se tratam como parentes. Chamam “pai” ao tio e “irmão” ao primo. Sem se importarem com a proximidade do parentesco, as designações de “pai” e “irmão” vão-se alargando indefinidamente.
No interior da comunidade (sociedade) bantu o chefe desempenha uma função fundamental no grupo. Como pessoa mais qualificada e vitalmente mais poderosa, é o guia necessário da comunidade e o guarda das suas tradições e da sua coesão. As motivações religiosas marcam o ritmo e caracterizam a sua mentalidade. O chefe constitui, com os notáveis e os anciãos, o grupo mais autorizado, o estrato social mais prestigiado e, como instituição presidida por um “enviado carismático”, que dirige, pensa, solidariza, vigia e procura o bem da comunidade. Quem vê o chefe contacta com a vida que arrancou do hipónimo, e contempla este e os outros antepassados. O chefe é o canal de conexão directa com a corrente vital ancestral. O chefe é o sangue e o espírito dos antepassados, prolongamento e deposito comunicante do dinamismo vital, pessoa sagrada, responsável pela comunidade perante os antepassados, seu delegado por capacidade e eleição e a sua encarnação, pois que, por intermédio dele, vivificam a comunidade a comunidade.
O bantu é essencialmente religioso, pois só pode realizar a sua existência em perfeita comunhão com o sagrado. Por isso, para o bantu a religião é cultura e cultura é religião. Onde se podemos encontrar elementos mais ou menos notórios como o feiticismo, o animismo, o naturalismo, o Ancestralismo, o animantismo e o totemismo.
É de ressaltar que uma das mais antigas formas de organização social, entre os bantu, se deve a ligação com os santuários. Os cultos dos santuários estavam mais relacionados com extensões territoriais do que com as linhagens de possessão e associados à curas médicas ou psíquicas. Estes cultos tinham responsabilidades de provocar as chuvas, controlar as cheias, propiciar sucessos ao caçador e fertilidade aos solos do agricultor. Cada culto era responsável pelo bem-estar de todos habitantes da sua área de influência, ultrapassando as fronteiras entre grupos sociais, o culto era dirigido por uma elite de sacerdotes e oficiantes
As sociedades secretas, também são grupos de indivíduos existentes na sociedade bantu que possuem uma velha tradição negro-africana, em geral, e bantu, em particular. Encontram-se em quase todos os grupos, com formas e fins diversos. E estes grupos são características peculiares dos povos bantu. Muitas destas sociedades servem de travão a uma tirania ocasional de um chefe ou uma oligarquia; reagrupam o clã, delimitam a influência feminina, imunizam o organismo social contra vírus nocivos e, inclusivamente, expulsam os corpos estranhos. Os membros destas sociedades são Senhores do poder judicial e executivo, cumprem, a partir da clandestinidade, as suas sentenças implacáveis.
Por fim, uma das praticas que testemunham a valorização da pessoa humana é o preço do sangue, uma lei de vingança, uma das maiores expressões de solidariedade que se fundamentam no conceito de que a perda de um indivíduo só se paga com outro indivíduo. Esta vingança é uma obrigação sagrada, porque o crime é um atentado ao valor estrutural mistico-comunitário – a vida. A sua aplicação é inevitável quando um membro do grupo é assassinado por um membro de outro grupo e mesmo no interior do grupo também é aplicada.


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Sugestões

Dentro dos limites da cidade de Luanda, encontra-se a árvore conhecida pela designação “Mulemba wa isi ya Ngola” (mulemba das terras de Ngola) ou, abreviadamente, “Mulemba wasia Ngola”, que marca os limites do Reino do Ndongo e, simultaneamente, a soberania de Ngola-a-Kilwanji kya Samba (Tal árvore encontra-se nos limites do actual bairro luandense da Petrangol, à comuna do Ngola Kiluanji, já nas imediações da área limítrofe de Cacuaco). De acordo com Samuel Aço, trata-se de uma árvore “de extraordinário porte, cujo tronco poderoso demonstra grande longevidade e possui uma copa frondosa, imensa, que torna o local sempre fresco e aprazível”.
Trata-se de um dos mais importantes locais de culto e de veneração da região de Luanda e arredores desde há alguns séculos. Ao contrário do que sucede com a kyanda, este é um local de culto público, onde cada um pode depositar as suas oferendas, evocar os santos e fazer as suas preces.
Tal como sucedeu em décadas passadas, nos dias de hoje é comum verem-se pessoas a dirigir-se a esse local, nas mais variadas ocasiões. Uma das mais importantes ocasiões de depósito de oferendas é o 11 de Novembro de cada ano, data em que se celebra o aniversário da independência política de Angola. Nessa ocasião, para além de prosperidade para si e para os seus, os luandenses pedem anualmente que se preserve a independência de Angola, que reinem entre nós a paz e a concórdia e que os angolanos possam rapidamente ocupar o lugar que lhes está reservado no sistema-mundo.
Outro caso, referido por Samuel Aço, tem a ver com a cerimónia de “estender a mesa aos antepassados”, que é realizada com alguma periodicidade no local, com o fim de “apaziguar os espíritos” e de solicitar a sua contribuição para o bem-estar e a prosperidade dos integrantes do grupo.
Como se vê, os descendentes de Ngola-a-Kilwanji kya Samba continuam a considerar a mulemba wasia Ngola local sagrado onde, em momentos precisos e em caso de necessidade, se recorre invocando os antepassados.
Trata-se de um local histórico a preservar em Luanda, seja devido à sua secularidade, seja devido à sua importância na preservação da comunidade e do grupo étnico ndongo, seja ainda devido ao papel que pode jogar no quadro do resgate dos valores morais e dos princípios cívicos dos luandenses.
Em face de tudo quanto aqui foi dito, sugere-se maior atenção ao local, que para além de sagrado, é considerado sítio histórico e pode contribuir decisivamente para o resgate dos princípios cívicos e morais na cidade de Luanda.
A kyanda é um ser maravilhoso que ajuda quem a ele recorre, o mesmo acontecendo com a mulemba, que é considerada a árvore da vida, das alianças e da fertilidade (humana e do solo). A kyanda e a mulemba são, pois, dois elementos de contacto com aquilo que é sagrado, servindo simultaneamente como garante da estabilidade e da prosperidade.
A estes dois elementos da tradição tumundongo, que convém não só preservar, mas também dar a conhecer aos jovens. O ideal seria incluí-los no programa de ensino, tendo em vista a sua utilização no quadro do processo de resgate dos valores cívicos e morais. Kyanda e mulemba sempre estiveram ligados ao respeito pelos princípios sagrados, pelas normas morais e pelos princípios de actuação cívica das pessoas. Devem, por isso, passar novamente a ser utilizados com o mesmo fim, no quadro do processo de resgate da tradição e dos valores cívicos por parte da juventude da região de Luanda e arredores.



  
Referências bibliográficas

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